Filmografia Fassbinder – Parte 2 (1971-1974)
O Mercador das Quatro Estações (Händler der Vier Jahreszeiten, 1971)
Primeiro sucesso comercial de Fassbinder e também a produção que serve como uma ponte entre os seus primeiros trabalhos (influenciados pelos cinemas de Jean-Luc Godard e Jean-Marie Straub e, na mesma medida, pelas peças de Bertold Brecht) e os melodramas que o tornariam mundialmente famoso, O Mercador das Quatro Estações está entre os mais simples de seus filmes, e é o mais comovente e direto; portanto, o mais belo: aquele que pode representar com transparência a complexidade de seu universo.
Seus créditos iniciais são apresentados sobre uma sucessão de imagens estranhas à medida de sua beleza. Nelas, alteram-se o rosto deste homem rústico a anunciar, a plenos pulmões, o seu produto (pêras) para uma pequena ruela com prédios baixos na Munique dos anos 1950. Ele gira e a câmera roda e, em meio à tontura que nos acomete, já saímos, de partida, próximos a ele, que continuará a gritar em uma espiral descendente de humilhação e indiferença, até o seu irremediável final.
Há, até chegarmos a isso, a aproximação que Fassbinder faz entre o casamento, o comércio e a prostituição. Hans, este personagem cujo colapso virá a ilustrar perfeitamente a visão de mundo de seu criador e, de uma maneira triste, antecipar também o seu próprio destino, encontra-se aos poucos ciente do absurdo dos três. Com isso, torna-se a cada nova decepção alguém mais solitário e distante. Alguém cujo flerte com a morte parece ser a única vazão possível a este mundo autômato, no qual as relações intersubjetivas vão para o ralo a cada esboço de algum gesto passional. Sua queda e sua loucura, assim como as de Fassbinder, são como os únicos sinais de esperança possíveis: um grito em direção ao firmamento, um vórtice rumo à libertação.
Bruno Cursini
As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (Die Bitteren Tränen der Petra von Kant, 1972)
Margit Carstensen é a eterna sofredora dos filmes de Fassbinder (além de ser uma de suas atrizes mais constantes, tendo trabalhado de O Café a Berlin Alexanderplatz). Quando vemos, em retrospecto, ela maltratando a assistente neste kammerspiel de 1972, sabemos que, cedo ou tarde, será ela a vítima dessa cadeia de dominação e sadismo. A responsável pela virada é Karin, personagem de Hannah Shygulla, a manipuladora predileta de Fassbinder. Nessa hierarquia de atrizes, sobra para Irm Herrmann, a mulher cujo fogo se esconde por expressões muito discretas de submissão.
Petra, de fato, vai se transformando em um dos manequins que compõem a decoração de sua casa, algo que fica claro no contracampo que a flagra com o rosto sendo cortado por uma lágrima, olhar fixo, pele branca de porcelana e peruca impecavelmente lisa. Esse contracampo assustador entrega a operação fassbinderiana do tirano sendo tiranizado, da mulher forte se enfraquecendo diante de uma verdadeira vampira, e se tornando humana novamente, para sofrer mais ainda.
Tudo isso é conduzido pelo trabalho de câmera espetacular de Michael Ballhaus. Uma câmera que reina absoluta no espaço exíguo onde se desenrola toda a ação. Que enclausura as personagens e as divide conforme as forças em jogo. Uma câmera que, trabalhando a verticalidade do formato 1.33:1, introjeta toda a emoção pretendida por trás de planos aparentemente frios. Ou melhor: permite que a emoção seja extravasada, num contraponto impressionante com o rigor da encenação.
Só existem mulheres no filme, mas a presença masculina se dá pelo papel de parede que reproduz um quadro de Nicolas Poussin no quarto de Petra.
Sérgio Alpendre
A Encruzilhada das Bestas Humanas (Wildwechsel, 1972)
A repressão sexual é hipócrita e cria tragédias. Tal afirmação resume com alguma segurança A Encruzilhada das Bestas Humanas, telefilme que Fassbinder dirigiu baseado na peça de Franz Yaver Kroetz. Um desses filmes raros que só são encontrados em seletas comunidades de compartilhamento.
Ao vestir seu protagonista com uma jaqueta de couro e ambientar a história nos anos 1950, Fassbinder novamente constroi canais de diálogo com o cinema clássico americano – desta vez com Nicholas Ray e seu Juventude Transviada. Está em cena o conflito entre o anseio e contestação dos jovens com a contenção dos mais velhos. Tal embate transforma equivocadamente em amor uma relação que pertence apenas ao campo do desejo.
Tal como James Dean em Ray, o ator Harry Baer exerce seu charme por meio da motocicleta, uma jaqueta descolada e um topete atrevido, resignificados por Fassbinder ao desdobrá-lo em Franz, o anti-herói que permeia a obra do alemão tal como os diversos Marcelos nos filmes de Walter Hugo Khouri. Dean e Baer dividem também o mesmo olhar lânguido, por vezes melancólico. Existem, todavia, características particulares ao filme de Fassbinder.
A primeira é o manejo do melodrama e uma subversão de um cenário aparentemente idílico que se revelará cenário de um crime, traindo as primeiras impressões. Segundo, o foco na classe trabalhadora e sua ausência de horizonte (justamente o melhor plano de A Encruzilhada das Bestas Humanas é um cruel travelling dentro da granja onde trabalha Franz). Terceiro, a ambientação na Alemanha pós-Segunda Guerra, que ainda tem no Nazismo um espectro desejado por setores descontentes com a “falta de ordem”.
Heitor Augusto
Oito Horas Não São Um Dia (Acht Stunden Sind Kein Tag, 1972)
A minissérie se passa em Köln, a mais antiga cidade grande da Alemanha e uma das que tiveram de ser totalmente reconstruídas após a II Guerra. Em 1945, o arquiteto Rudolf Schwarz chamou Colônia de "a maior pilha de escombros do mundo".
Fassbinder filma essa Colônia algumas décadas depois, quando já se sentiam os resultados de uma das maiores injeções de investimento do Ocidente: anos 1970, época de acelerada industrialização, grande oferta de emprego em fábricas, empobrecimento da classe média e consequente supervalorização de imóveis em bairros periféricos. Tudo isso afeta principalmente a classe média baixa, aposentados e trabalhadores de fábricas e pequenos negócios, caso de todos os personagens de Acht Stunden sind kein Tag.
Como escreveu Thomas Elsaesser em Fassbinder’s Germany, o personagem principal, Jochen, é uma versão proativa de Jorgo, o trabalhador grego passivo e resignado do filme Katzelmacher, que o diretor fez 3 anos antes. Enquanto Jorgo é alienado, incapaz de enfrentar as forças opressivas, Jochen é consciente e luta para melhorar sua situação. Ainda que suas tentativas sejam quase sempre frustradas, ou só tragam resultado para ele mesmo e não para sua classe. Outro paralelo: o título do filme de 1969, Katzelmacher, é uma antiga gíria usada para ridicularizar trabalhadores estrangeiros na Alemanha (também conhecidos como Gästearbeiter), enquanto o título da minissérie, Oito Horas Não São Um Dia, tornou-se expressão popular no país como uma espécie de conselho para que não se superestime o espaço do trabalho na vida ou na identidade de alguém, de que se mantenha em mente que o trabalho é apenas uma forma de comprar o pão e a manteiga, como se dizia.
Ainda que em Acht Stunden Sind Kein Tag Fassbinder engendre uma síntese de temas envolvendo o trabalho, já presentes em outras de suas obras – do Gästarbeiter (Katzelmacher), do trabalhador enquanto classe (Mother Küster’s Trip to Heaven) e do lumpemproletariado (O Amor é Mais Frio que a Morte) – , é no seio da família que se dão os conflitos mais fortes da minissérie: a criança que apanha na frente de todos, o pai machista e a mãe sem voz, o alcoolismo indisfarçável da avó, o nervosismo agressivo das pessoas de meia-idade, o afobamento juvenil; tudo se desvela da forma mais desconfortável possível, é nos encontros (e nos escombros) familiares que se dá o extravasamento da opressão diária no trabalho, e onde somos fascinados pelos zooms de constrangimento de Fassbinder, os closes menos sutis e os diálogos mais duros e diretos.
As cenas do casal Marion e Jochen no bordel é um dos pontos altos da minissérie; pela delicadeza de Fassbinder ao filmar a dança erótica da cowgirl – um dos raros momentos de nudez feminina fetichizada na obra do diretor – intercalando imagens de Marion ciumenta e de Jochen conversando com uma prostituta do local, tudo ao som da música do assovio do velho oeste de Enio Morricone (Três homens em conflito). Marion sai correndo e Jochen vai atrás. Após um breve desentendimento e um pedido mútuo de desculpas (afinal foi Marion quem insistiu para entrar no bordel), eles declaram pela primeira vez o amor de um pelo outro. Ambos recusam a si mesmos a postura de vítima ou algoz: e ao se reconhecerem assim, conscientes e justos, apaixonam-se definitivamente.
É interessante que, ainda que mais conscientes, os personagens de Acht Stunden Sind Kein Tag – estejam eles no trabalho, no bar ou no bordel – estão sempre sob a mesma Stimmung: as atuações sempre variando dentro da mesma limitada gama de expressões faciais, sem extremos de tristeza ou felicidade. O único extremo é a falta de bom senso onde ele parece não ter lugar: na família e nos relacionamentos íntimos. A letra da música "Me & Bob McGee" (reproduzida quase na íntegra na minissérie durante uma conversa de bar) sugere uma espécie de filosofia de vida e de cinema do diretor: de que “liberdade é apenas outra palavra para expressar que não temos nada a perder” – ao menos não com os mais íntimos. É curioso que num país que assistiu a séries como Acht Stunden Sind Kein Tag as pessoas pareçam hoje menos preocupadas em perguntar “O que você faz?” logo depois de serem apresentadas a alguém. Na Alemanha, Fassbinder já dava o recado nos anos 1970, e em rede televisiva aberta: trabalho é só pano de fundo.
Gabriela Wondracek Linck
Uma Mulher de Negócios (Bremer Freiheit, 1972)
Este é um filme particularmente curioso dentro da filmografia de Fassbinder: o texto é uma peça de autoria do cineasta, e o filme nada mais é que um registro decupado desta. Durante todo o filme, assistimos ao palco, ouvimos aos passos e ecos de um palco. Um cenário único, que se aparenta a uma sala, com algumas poltronas, e ao centro uma penteadeira, cuidadosamente o local onde a protagonista se refugia em certos momentos do filme. Ao fundo, para tornar ainda mais esquisito o que vemos, imagens são projetadas, na maior parte do tempo pincelando com tons de mar e nuvens a progressão do drama em cena. Produzido para a TV, é um trabalho que desafia a força que está entre o gesto do ator e a distância em que a câmera se coloca dele.
Vemos um caso de uma mulher que assassina todos a sua volta: filho, maridos, família e quem entrasse em seu caminho. Mas o filme não a mostra como um caso de psicose em si, mas de uma mulher desesperada para se libertar da opressão representada por todos. O berro de bebê é um elemento de terror para a personagem, muito mais que a presença da assassina em si. Com o habitual peso do cineasta, os personagens se jogam ao chão em cena. A liberdade tão buscada pela personagem seria enfim conquistada? O final não se prolonga a estes fatos, mas conta-se que ela teria sido presa, julgada e decapitada, na última vez que se usou força letal contra criminosos em Bremen. Talvez porque o que interessa de fato ao cineasta não seja o suspense e sim o drama de sua personagem, ele não mostre o destino dela – não a qualquer tom de terror aos assassinatos, a cada ato os personagens vão se colocando em perigo e sendo assassinados. Um objeto estranho, apesar de coerente com sua obra.
Guilherme Martins
World on a Wire (Welt am Draht, 1973)
Minissérie de três horas e meia, originalmente dividida em dois capítulos, World on a Wire é a única incursão de Fassbinder pela ficção-científica. Contudo, seu universo é, inequivocamente, parte daquele construído por seu realizador.
Adaptação do romance Simulacron-3, escrito pelo americano Daniel F. Galouye e lançado em 1964, World on a Wire contém uma das primeiras tramas envolvendo aquilo a que hoje já estamos saturados: em um futuro próximo, a realidade virtual criada por uma empresa faz com que aqueles que a integram acreditem serem humanos. Após a morte inexplicável do líder deste projeto, seu sucessor passa, aos poucos, a compreender que eles também fazem parte de um imenso simulacro, e que o chamado mundo real está, na verdade, um grau acima deles.
Segue, daí, uma distopia paranoica, de sabotagem e controle, onde a ilusão da individualidade faz com que esses personagens não percebam que são desolados fantoches, peças de uma maquinaria, facilmente substituíveis. Se é através do conhecimento que se pode cultivar uma humanidade (as múltiplas referências à Grécia antiga não estão aqui por acaso), a grande disponibilidade de informação neste mundo moderno faz de tudo para impedir a Razão de aflorar, pois ela acabaria por desmascarar essa ilusão, essa imitação fiel que pode gerar apenas a plenitude sensual das formas: baseada nos sentidos, ela só produz semelhança, afastando os cidadãos da realidade, imobilizando o sujeito.
Para demonstrar como os sentidos não podem conhecer a verdade – eles são a fonte de engano, afinal, aprisionando a Razão –, Fassbinder utiliza-se de cenários de uma opacidade capaz de destacá-los até mesmo se comparados a outros de sua filmografia: espelhos, vidros e superfícies metálicas servem para refletir (e distorcer, confundir e projetar) estes personagens, perdidos em um labirinto tecnológico que lhes oferece tudo, exceto a capacidade de agirem e pensarem autonomamente.
Essa é a dimensão ética de World on a Wire e, no limite, de qualquer outro Fassbinder.
Bruno Cursini
Nora Helmer é a protagonista de A Casa das Bonecas, peça mais famosa do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen que Fassbinder adapta para a televisão alemã, no mesmo ano da versão de Joseph Losey (embora a de Fassbinder seja veiculada só em fevereiro de 1974). Quem interpreta a famosa personagem é Margit Carstensen, que três meses depois apareceria, também na TV alemã, protagonizando o inesquecível Martha.
Tal adaptação, filmada em videotape (assim como Mulher de Negócios) é também experimental. Fassbinder usa a textura do video para aprofundar a impressão difusa da câmera que está sempre por trás de alguma coisa (uma radicalização da última fase de Max Ophuls), as fusões que alteram o registro espacial. A câmera se move por repartições com arabescos que dividem os cômodos da casa, flagra personagens em pequenos recortes dentro dos arabescos, ou em reflexos no espelho e acompanha (muitas vezes com zoom) uma constante movimentação dos atores.
Nora Helmer nunca é citado como um dos grandes filmes do diretor (algo plenamente justo), mas seus experimentos são até mais radicais que os de Mulher de Negócios, mais chamativos sem chegar necessariamente em algum lugar (ainda que o simples experimento seja bem valioso), e mostram um cineasta com pleno domínio do texto de um dos seus maiores heróis (o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen, herói também de Ingmar Bergman).
Sérgio Alpendre
O Medo Devora a Alma (Angst Essen Seele Auf, 1973)
Ápice da entrega assumida de Fassbinder ao melodrama, iniciada com veemência em O Comerciante das Quatro Estações (1971), o filme refaz o clássico Tudo que o Céu Permite (1955), de Douglas Sirk, de maneira particular. Em seu 22º longa-metragem, aos 29 anos, o diretor transfere para o conflito da personagem central – senhora alemã branca, de classe média, viúva, que se apaixona e se casa com um negro marroquino bem mais jovem e enfrenta todo tipo de olhar torto dos filhos e da sociedade – o microcosmo de uma situação social no limite da explosão.
O filme consegue ao mesmo tempo comover pelo simples desenvolvimento do enredo e também ao provocar curto-circuito nas certezas do espectador. Há, aqui, a típica perfidez de trabalhos mais histéricos e menos sutis de Fassbinder (O Assado de Satã; Cuidado com a Puta Sagrada) travestida de drama burguês contemporâneo, no qual a chave de percepção está no olhar não só do cineasta para o meio onde ele vive, mas na contaminação do olhar dos personagens para si próprios e àqueles com quem convivem.
Há genuíno impacto visual ao vermos Emmi (Brigitte Mira) quase sempre mostrada em enquadramentos ladeados por portas e grades – aprisionada por sua situação e suas escolhas – para, mais ao final, outra personagem surgir dentro do mesmo tipo de enquadramento, enquanto Emmi surge agora do lado de "fora" das limitações físicas. Ou a imagem solitária e enigmática de Ali (El Hedi ben Salem), também através de portas, quase sempre sentado, quadro trágico e representativo da marginalização social imposta a figuras como a dele naquela Alemanha captada por Fassbinder. Ao fim, o cineasta atinge um clímax de ternura e (falso) otimismo. A vivência mútua pode ser possível, mas nunca será em paz.
Marcelo Miranda
Martha (1973)
Um dos filmes mais perturbadores, cruéis e refinados de Fassbinder. Lugar comum dizer que une influências do mais mordaz Buñuel com o melodrama de Sirk (no filme, Martha afirma que mora na Rua Douglas Sirk ), mas sem nenhum alívio ou sem a hipocrisia que afeta a sociedade americana. A fortuna crítica do filme é extensa, inclusive a que vê a submissão de Martha ao esposo como uma alegoria das atrocidades nazistas. Inúmeros também os que tentam decifrar os mirabolantes planos criados por Fassbinder e Ballhaus, caso da antológica cena na escadaria na qual o pai enfarta, o pedido de casamento no parque de diversões e o ainda mais antológico giro 720º quando a câmera enlaça os destinos de Martha e Helmut.
Em mais um perfil feminino, Fassbinder situa Martha no limite entre o humano e o não-humano. Ela a tudo se sujeita. Personagem de cera, no escritório, funde-se às pedras de mármore como se fosse uma delas. Martha percebe-se humana sem saber como se constituir enquanto tal, sem se dar conta de estar cercada pelo mais perverso: a família ruinosa, a sociedade estruturada pela convenção opressora e o casamento burguês como uma instituição sado-masoquista. É uma Effi Briest moderna entregue a um jogo ainda mais enlouquecedor que a levará inevitavelmente à paralisia, física.
Signo da morte, é acusada pelo enfarto do pai e de querer matar a mãe – o que até deseja-, e vê morrer tudo que pode apontar uma saída: o amor pelo pai, o casamento, o trabalho e o amigo que estende a mão para salvá-la. Busca em todo filme uma forma de se anestesiar do mundo que a sufoca, e acaba como a imagem da mulher sem corpo que chora, imagem que a assusta e que depois ela mineraliza em si.
Cesar Zamberlan
Effi Briest (Fontane Effi Briest, 1974)
Em Effi Briest, Fassbinder adapta o romance histórico de Fontane que trata do casamento do Barão Innstetten com uma jovem de apenas 17 anos: Effi Briest. O filme poderia ser enquadrado nos perfis femininos do diretor, contemporâneo à Nora Helmer, outra adaptação, desta vez de Ibsen, e Martha, e predecessor de Lili Marlene e Lola, da década de 80; mas, mais que isso, como o próprio longo subtítulo do filme diz – "os muitos que fazem ideia de suas capacidades ou necessidades, porém aceitam através de suas ações a ordem dominante ajudando, desta forma, a sustentá-la ou fortalecê-la" -, é um filme no qual Fassbinder, naquela que é a tônica de boa parte de sua obra, busca enfrentar e esmiuçar a sociedade e as relações opressivas que esta estabelece com os mais fracos, sobretudo, com as mulheres. Ou ainda, como o próprio Fassbinder afirma, é um filme no qual o verdadeiro personagem, mais que Effi Briest, é Fontane, o texto deste e o mecanismo de opressão que ele expõe e que funciona desde sempre. Cabe lembrar que o título alemão do filme é Fontane Effi Briest.
A operação fílmica de leitura em Effi Briest é próxima à de Straub quando visita Kafka em Relações de Classe, adaptado de Amérika. Esvazia-se toda a carga e encenação dramática, criando uma relação de distanciamento e estranhamento que gera um efeito refratário do texto, efeito similar ao dos espelhos que sempre cindem a personagem feminina, cisão que ocorre também na fotografia do filme em um preto e branco bem polarizado. Textualmente denso, o filme não cai em maniqueísmos. Dá voz a todos e a câmera perscruta a situação sem julgamentos morais, buscando, como nos fades em branco, iluminar situações.
Cesar Zamberlan
O Direito do Mais Forte à Liberdade (Faustrecht der Freiheit, 1974)
Uma gaiola é sempre uma gaiola, não importa o adorno que leve. O Direito do Mais Forte à Liberdade não é o primeiro filme de Fassbinder a destruir os sonhos de perfumaria e seus personagens – lembremos do desolador plano com Hanna Schygulla espezinhada na relva em Pioneiros em Ingolstadt. Mas é um dos mais incômodos de acompanhar, já que Fassbinder trabalha na chave consciência total do espectador X inconsciência absoluta do protagonista.
Pois trata-se de uma malha de dominação. Em vez de Carlos que amava Dora, é Carlos que dominava Dora – o exercício do domínio transita por uma palheta que passa pela autoridade, repressão, diminuição e ocupação do outro. O controle de Eugen – e seus amigos, não os de Fox – se estabelece pela única arma que Fox não tem: o verbo.
Fox tem o jogo de cintura de quem cresceu numa família pobre e desestruturada; tem a “malandragem” para se aproveitar do mais fraco com pequenos truques; tem o vigor sexual, afirmado pelo pênis avantajado que Fassbinder faz questão de exibir para reiterar a potência e exercer o fascínio pelo falo
Mas não tem o verbo. Eugen e seus amigos têm e o utilizam sem remorso. Se no discreto plano em que vemos Fox por detrás da escada do apartamento cria-se um efeito de prisão, na qual retém-se o personagem sem que ele entenda nem como ou o porquê, é na estupenda sequência da rampa em que se torna explícito o poder do verbo.
Ali, sem perceber a fogueira que lhe espera, Fox desce ao inferno. Percebe tardiamente que de raposa, apesar do apelido que carrega, ele não tem nada – está mais para galinha. Não é o tridente, mas sim a luva de pelica, que o empurra rumo ao esfacelamento, à desolação.
Pobre Fox. Achou que poderia entrar e sair da gaiola quando quisesse. Errou. Esqueceu-se de que uma gaiola é sempre uma gaiola.
Heitor Augusto
Como um Pássaro no Fio (Wie ein Vogel auf dem Draht, 1974)
Média-metragem sublime e melancólico que homenageia o talento da atriz e cantora Brigitte Mira (protagonista de O Medo Devora a Alma). Trata-se de uma performance musical sobre a personagem de Mira, seu passado e seu envolvimento com diversos tipos de homem. O que Fassbinder discute, mais uma vez, ainda que indiretamente, é a masculinidade (o que é? como se registra? como pode se libertar das masmorras da sociedade?) e a sexualidade feminina.
Em muitos momentos, o filme se assemelha bastante a um espetáculo musical desses feitos para a TV, como se fosse uma coletânea de clipes, e até com o aparato de filmagem sendo mostrado. Nessas sequências, ainda assim, fica clara a preocupação de Fassbinder, esse herdeiro de Max Ophuls (mais do que de Douglas Sirk), com o enquadramento rebuscado. Ophuls era o diretor que movimentava bastante a câmera, fazendo-a flagrar o ator/atriz quase sempre por trás de algum objeto parcialmente desfocado. É precisamente o que Fassbinder faz em seus filmes, incluindo aqueles feitos para a TV.
Em outro momento, temos um pedaço da vida dessa mulher: o diálogo com uma amiga que reencontrou no trem, filmado com planos e contraplanos estáticos, com as duas mulheres de perfil, enquadradas pela janela da cabine do trem. E há grandes falas de Brigitte Mira, com destaque para uma, em resposta ao pedido do produtor para que ela não cante uma canção triste porque a audiência não iria gostar: "a audiência não é tão ignorante como normalmente supomos". Seria Fassbinder se reportando a alguém?
Sérgio Alpendre
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