Carrie
Carrie, a Estranha (Carrie, 2013), de Kimberly Peirce
O primeiro impacto da versão 2013 de Carrie, a Estranha é enxergá-lo à sombra do filme de 1976, dirigido por um jovem Brian De Palma ainda na comoção do sucesso do romance de Stephen King lançado dois anos antes. Os tempos eram outros – não apenas em termos cronológicos (lá se vão quase quatro décadas), mas especialmente nas formas de retratar o universo pelo qual o enredo trafega. Mais do que uma trama de horror, Carrie sempre tratou de amadurecimento – à base de muito sangue, mas, de qualquer forma, amadurecimento. O sangue, aliás, é o elemento-síntese desde o começo, com a protagonista tendo a primeira menstruação, e chega ao paroxismo no baile de formatura, quando a garota leva ao máximo os poderes paranormais. Considerando o arco dramático de Carrie (fundamental para que se absorva a perturbação que ele provoca), temos aqui uma espécie de “história de aprendizado” invertida, em que a personagem se torna adulta às custas da própria vida e das de todas as pessoas que a rodeiam (incluindo a mãe, fanática religiosa).
Como pegar um ponto de partida desses, trabalhado de maneira concisa por King nas letras e por De Palma nas imagens e sons, e transferi-lo ao cinema industrial e excessivo do século XXI? Para complicar ainda mais a situação do novo filme, a diretora Kimberly Peirce optou por seguir os códigos do terror americano contemporâneo, no qual a média de produções fica abaixo do medíocre, muito por conta da falta de talento no tratamento de seus temas e de um mau uso dos recursos mais básicos de cinema. O novo Carrie, a Estranha fica nessa encruzilhada: tem por base um material explosivo (quase literalmente) e o pasteuriza de maneira a modernizar as premissas, mantendo algo da essência ao mesmo tempo em que o recodifica a uma plateia que, em tese (e sob doses maciças de X-Men e derivados mutantes e mutanoides), não tem mais por que levar a sério uma adolescente esquisita com capacidade de mover objetos com a mente e que promove um massacre na cidade onde mora.
A produção decide por facilitar o caminho dessa plateia-alvo: se não se pode mais mostrar novidades, que se fique no conforto. A escalação de Chlöe Grace Moretz para o papel-título se coloca como a marca mais evidente da piscada de olho que Carrie quer oferecer ao público que busca. Rosto conhecido da franquia Kick-Ass, Moretz fez a menina-prodígio Hit Girl, cujas maiores características eram dar golpes de espada para arrancar todo tipo de membro de seus adversários e estar sempre trajada com uniforme e máscara de super-heroína. Ela foi também a amiguinha esperta do protagonista de A Invenção de Hugo Cabret e a vampirinha sapeca de Deixe-me Entrar. A nova Carrie, portanto, chega ao filme carregada desse breve, porém significativo, histórico de atuação, e fica bastante evidente na tela que Kimberly Peirce trabalha esse imaginário ao tratar a jovem inicialmente frágil como uma menina que, ao descobrir e dominar os poderes que possui, torna-se de fato uma antagonista a suas inimigas de escola.
O "castigo" perpetrado por Carrie é preparado pelo filme como o encaminhamento lógico de uma personagem que tem rosto, corpo e voz de Chlöe Grace Moretz. Não haverá qualquer dúvida de que ela vai superar os obstáculos e se vingar do bullying, porque essa é a relação que o filme estabelece desde o princípio (desde o cartaz). O suspense, ao menos àqueles que não conhecem a história original, sustenta-se no aprendizado solitário dessa garota até a explosão final, momento este tratado pelo filme com um gosto cruel de vingança típico do cinema hollywoodiano mais reacionário. Não basta a esta nova Carrie provocar o acidente de carro que imobiliza a principal rival na escola: é preciso que ela tenha alguns instantes de prazer mórbido ao olhar para a moça atravessada pelo vidro do carro, antes que tudo vá pelos ares. Se o espectador se incomodar com a moral maligna da personagem (afinal, ela é a protagonista), logo uma fala de Carrie dirigida a outra garota coloca as coisas no devido lugar: "Veja no que eu me transformei!". O filme, assim, não assume completamente que trata sua Carrie como um monstro; ela precisa "ter se transformado" num monstro por aqueles que mereceram o castigo da menina carola. A plateia pode se saciar sem maiores questionamentos nem ambiguidades.
Desde o romance de Stephen King, Carrie é, de fato, uma fábula moral. Existem ideias pré-concebidas que se desenvolvem pelo enredo de forma a fazerem sentido no todo (e por isso tanto livro quanto adaptações de cinema parecem existir quase unicamente para chegarem ao baile de formatura). Nesse espectro, a versão de Kimberly Peirce está na lógica do material-matriz. O que gera a limitação do filme é que essa moralidade inerente não basta às ambições e exigências contemporâneas nas quais o filme quer se vincular. A comparação aqui será, por definição, covarde, mas é interessante pensar nas formas escolhidas por cada cineasta (em cada época) a partir dos mesmos estímulos. Se De Palma se utilizava de recursos barrocos (e, ao seu modo, também excessivos, como a tela dividida) para transmitir o choque das ações de Carrie, assim reforçando a necessidade de abarcar todo o universo (não só o de Carrie, mas daqueles que a rodeiam e que serão suas vítimas), o caminho de Peirce é o dos efeitos visuais e sonoros tecnicamente perfeitos, cuja finalidade se frustra pela frouxidão generalizada da encenação, pela visão engessada à personagem e pela quase onipotência de Moretz no papel.
Marcelo Miranda
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