Um Estranho no Lago
Um Estranho no Lago (L’inconnu du Lac, 2013), de Alain Guiraudie
O dispêndio improdutivo, na definição do filósofo francês Georges Bataille, seria o núcleo das atividades humanas que, “pelo menos nas condições primitivas, têm em si mesmas seu fim”. É o inverso da acumulação de riqueza e capital, de gastos “úteis” e materiais. Abarcados no dispêndio improdutivo estariam, ainda segundo Bataille, “o luxo, os enterros, as guerras, os cultos, as construções de monumentos santuários, os jogos, os espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa”. A ousadia de seu pensamento está na ironia do termo “improdutivo”: apesar de, em tese, não servirem para nada, essas atividades são, cada uma à sua maneira, as que fazem a vida ter algum sentido. Sem elas, o homem seria reduzido à miséria afetiva.
Se aplicarmos as ideias de Bataille a Um Estranho no Lago, pode-se dizer que os homens vão ao idílico lugar onde o filme se ambienta em busca do dispêndio improdutivo que o preencha de alguma humanidade. O fato de o local ser uma espécie de pequeno paraíso do sexo homossexual livre, espaço onde todos praticam com despudor a exibição de corpos nus, o flerte descompromissado e a transa movida por puro tesão físico, apenas reforça o caráter de exceção que o lugar parece conter. Os homens não vão ali necessariamente para se esconder, mas simplesmente para se entregarem à liberdade que, fora daquele espaço (na dimensão moral e social de vidas pessoais, trabalho, família, amigos), não se completa. Eles vão ao lago aproveitarem o “interdito” – numa outra conceituação de Bataille, os interditos são fundamentais para que o homem permaneça como ser racional apto ao trabalho e à convivência coletiva, e também para aplacar sua violência latente e natural e, com isso, simbolicamente rejeitar a consciência da morte, que é, afinal, o maior de todos os temores.
Mas o filme de Alain Guiraudie vai promover um ruído no idílio “improdutivo” ao colocar o protagonista Franck justamente diante da morte – ou melhor, da já dita consciência da morte. Não a sua, mas a de outro frequentador do lago. A ação vai justamente plantar em Franck o temor de que ele também é mortal, independente de estar num idílio. A questão essencial do filme é que essa morte será vista apenas pelo personagem, num plano ponto-de-vista cujo sentido se aproxima tanto a alguns já feitos por Michelangelo Antonioni quanto a outros de Brian De Palma, num distanciamento que não permite, nem a Franck nem ao espectador, ter certeza daquilo que de fato aconteceu. Existe a consciência, mas essa consciência é incompleta. Como a arte moderna em si, a morte vista pelos olhos do rapaz e da câmera de Guiraudie (sendo todos aqui a mesma coisa, olhos e câmera) existe num fragmento de si mesma, num recorte incapaz de atingir a totalidade da representação. Ela não é suficiente para ser compreendida, mas é suficiente para implantar o mal-estar.
A água, em geral, existe na arte como elemento de purificação e limpeza, muitas vezes como elemento que reconfigura um personagem de um estágio a outro. Em Um Estranho no Lago, a morte vista por Franck faz a água sofrer uma transubstanciação, pela qual aquele que entra no lago não mais sai “limpo”, mas “sujo” – de crime, pecado e transgressão. O corpo sedutor que encanta Franck é o mesmo que perpetra a morte e inunda as águas do lago da imundície moral; é aquele que faz do paraíso do dispêndio improdutivo algo próximo ao rio Mystic (o “rio místico”) de Sobre Meninos e Lobos (Clint Eastwood, 2003), depositário de cadáveres que parecem fazer, de alguma maneira, a história secreta de toda uma comunidade. Quando Franck entra na água depois do crime, a convite do amante, ele tem a segurança de que sabe o que aconteceu, mas a incerteza sobre poder ser o próximo. De certa maneira, o ciclo aqui completado pelo protagonista o aproxima de alguns protagonistas dos filmes de Roman Polanski (frisemos especialmente O Último Portal e O Escritor Fantasma) e seus eternos retornos nietzcheanos “terceirizados” por outros personagens, anteriores aos filmes e os quais a trajetória se repete de maneira ao mesmo tempo igual e distinta da que não foi vista pelo espectador.
Georges Bataille também diz, ao emular o Marquês de Sade: “O que ele quis dizer geralmente horroriza mesmo aqueles que fingem admirá-lo e não reconheceram por si mesmos este fato angustiante: que o movimento do amor, levado ao extremo, é um movimento de morte”. A consciência da mortalidade não impede Franck de se entregar à paixão, ao corpo escultural do homem com quem já vinha flertando e que vem a ser o autor do crime testemunhado secretamente por ele. O sexo, assim, é tão prazeroso quanto angustiante, pois tão carregado da pulsão primitiva e instintiva do corpo quanto do racionalismo da mente, do conhecimento privilegiado de um segredo capaz de pôr a perder o dispêndio improdutivo. Bataille: “(A convulsão erótica) libera órgãos pletóricos num jogo cego que suplanta a vontade ponderada dos amantes. A essa vontade ponderada sucedem os movimentos animais desses órgãos cheios de sangue. Uma violência que escapa ao controle da razão anima esses órgãos, distende-os até o limite máximo e, de repente, é a felicidade que se atinge ao ultrapassar essa desordem”.
Guiraudie filma o ato sexual num misto de encanto pelos efluxos (é bastante recorrente a frase “vou gozar…”, dita entre gemidos, e há uma ejaculação em primeiro plano) e certo tom cafona na inserção de planos de céu, nuvens e sombras das árvores delineando os corpos em êxtase. As nuvens, aqui, nos lembram planos parecidos em trabalhos de Gus Van Sant, usados neste quase sempre para reforçarem o incômodo e a inquietação dos corpos que circulam pelos espaços que ele capta. Em Guiraudie, o mal-estar está mais evidente no comportamento de Franck (quase sempre apático à própria situação) e na insistência do filme de marcar a passagem dos dias pelo plano fixo do estacionamento de carros – quanto mais o tempo passa, mais arriscada é a posição de Franck e mais rumo à tragédia ele parece se encaminhar.
Franck é a metade de um Raskólnikov cindido em dois: se ele é a consciência questionadora e duvidosa do crime, o amante, Michel, é quem empunha o machado (para reforçar a analogia possível com Crime e Castigo, há até um inspetor que parece surgido de outro universo, demonstrando compreender a lógica dos fatos muito mais do que qualquer um dos outros homens ali presentes). O protagonista, porém, não vai encontrar a redenção no amor, mas nas conversas com Henri. Lenhador em férias, Henri nunca parece feliz, ainda que conserve prazer nos diálogos que mantém com Franck. É o único personagem a aparentemente refletir sobre alguma coisa externa ao dispêndio improdutivo proporcionado pelo lago: rompido com a namorada, Henri não se desgarra do mundo exterior. Ele o carrega para os momentos de descanso. Provavelmente por isso, seu destino será o mais trágico do filme – mas não o menos esperado, ao menos a ele. Ao ser degolado, cochicha: “Era isso que eu buscava. Meu único medo era a dor…”.
Henri reforça, nos seus momentos finais, a lucidez que o condenou à morte. Ele é assassinado num plano que Guiraudie filma como se fosse uma experiência de Schrödinger: de novo o ponto de vista da câmera é o mesmo de Franck e, do local de onde ele olha, Henri está atrás de um arbusto, deitado por baixo de Michel. Ele vê um ataque ou uma trepada? Naqueles poucos segundos, o amigo pode estar tão vivo quanto morto, porque Franck não sabe o que vê e não tem parâmetros para desconfiar nem de uma coisa nem de outra. Por segundos, Guiraudie faz com que, numa única cena, sexo e morte convivam no mesmo espaço, sem que saibamos qual dos dois estamos a testemunhar junto com Franck. O cineasta materializa, aqui, o citado conceito de Sade: “o movimento do amor é um movimento de morte”.
O desaparecimento de Henri parece ser o momento derradeiro de Um Estranho no Lago, sendo as cenas seguintes próximas de um epílogo informal que nunca vai se concluir, talvez por absoluta impossibilidade. A lucidez foi derrotada, portanto resta a Franck se entregar à consciência da morte, assumir o desejo e o rompante erótico e deixar o corpo assumir (“Toda a concretização do erotismo tem por fim atingir o mais íntimo do ser, no ponto em que o coração nos falta”, escreveu Bataille).
Guiraudie inscreve o filme naquilo que Dominique Païni chamaria de “noção do inacabamento” – “uma das inquietudes comuns aos grandes inventores de formas no século XX”. Trata-se da ideia de que, na modernidade artística, a necessidade da finitude foi estilhaçada em prol da possibilidade do fragmento, da negação do “desfecho” e daquilo que Païni chama de “suspensão poética”.
Em Um Estranho no Lago, o idílio iniciado numa manhã “improdutiva”, mostrada pelo plano de abertura do filme, culmina na escuridão e na invisibilidade dos corpos surgidas ao cair da noite, após todo um trajeto pelo inferno. Sobra agora a consciência, dividida entre se manter na entrega do desejo ou fugir e abrir mão do paraíso. Todas as questões estão propostas. Franck clama por Michel, e o que ele obtém de retorno não mais nos pertence. Pertence apenas a ele, tanto quanto também é propriedade da arte, da “fábula contrariada” defendida por Jacques Ranciére e da “sensação de monstruosidade” que Païni relaciona ao cinema de Raul Ruiz e parece caber também ao filme de Guiraudie: “Tanto mais forte quanto mais o cineasta constrói com frequência suas ficções a partir da busca de um objeto ausente”.
Marcelo Miranda
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