Ano VII

Jovem e Bela

segunda-feira dez 9, 2013

Jovem e bela (Jeune & Jolie, 2013) de François Ozon

Há três momentos, em Jovem e Bela, que revelam muito bem o olhar proposto pelo diretor François Ozon. No primeiro, logo no início, acompanhamos a protagonista, Isabelle (Marine Vatch), tomando sol em uma praia, com a câmera emoldurada por um binóculo – o voyeurismo e a tensão sexual construída logo são dissipados, ao sabermos que quem olhava era o irmão de Isabelle. O segundo é quando a protagonista vai perder sua virgindade – com um turista alemão, na praia e durante as férias – e se observa vendo de fora toda a situação, deixando transparecer uma suposta decepção com aquilo tudo. Por fim, o terceiro, já no final, é quando Isabelle se encontra com a personagem de Charlotte Rampling, mulher de um cliente que morreu durante um programa com Isabelle. A personagem de Rampling insiste em visitar o quarto no qual o esposo faleceu, ambas vão até lá, se deitam na cama e Rampling observa Isabelle, acariciando seu rosto, como que fascinada pela imagem que vê (desejando, talvez, uma imagem própria que se perdeu?). As duas adormecem e, ao acordar, sozinha e num susto, Isabelle vê sua imagem refletida no espelho, num jogo de olhares e imagens induzido pela câmera de Ozon – algo recorrente no cinema do diretor.

O que permeia tais momentos é a importância que o ato de olhar possui em cada um deles, e por conseguinte o estatuto de reveladora de uma verdade maior que essa imagem virtual (a imagem formada pelo binóculo, a vista de fora – como se fosse uma espectadora de um filme – quando Isabelle se enxerga perdendo a virgindade ou até mesmo a imagem que Rampling faz de Isabelle, projetando sobre aquela menina uma ideia ou uma vontade de explicação do porquê fora traída pelo marido) adquire. Assim, pode-se dizer que Jovem e Bela procura conferir um olhar que não julgue ou enquadre os motivos que levaram Isabelle a se prostituir. O filme faz questão de a todo momento nos mostrar que os principais motivos possíveis que a levaram à prostituição – ambições financeiras, questões familiares e por aí vai – não são a força motriz que engendra tal comportamento. Nesse sentido, o ato de olhar de fora, que permeia os momentos apontados acima, se torna uma presença muito didática no filme: é através dele e da perseverança desse exercício que possivelmente encontraremos uma verdade acerca daquela personagem, sem o auxílio de quaisquer outros rótulos pré-concebidos.

Se havia alguma semelhança na trama com o clássico de Luís Buñuel, A Bela da Tarde, ela é prontamente desfeita. Enquanto Buñuel tratou de circunscrever as atitudes, escolhas e tormentos de Séverine à decadente sociedade burguesa em que ela vivia, Ozon procura despir a trajetória de Isabelle de qualquer motivo aparente, insistindo nessa ideia de uma imagem que não se revela facilmente, não enquadra, não julga sua protagonista. As primeiras sensações que advém do estudo de personagem aqui proposto são uma intensa frieza e indiferença por parte de Isabelle. Num primeiro momento – apesar do efeito de choque rápido no espectador, tão afeito ao gosto publicitário, que permeia o cinema de Ozon – é inegável que, através dessa frieza e indiferença, se constrói uma inquietação inicial em torno do comportamento da jovem, que sem motivo aparente, resolve começar a se prostituir.

Parece, contudo, que isso basta para Ozon. Dessa inquietação inicial em diante, o que ocorre é apenas uma constante explicitação do olhar que o filme busca: ele se compraz em mostrar que não enquadra Isabelle em nenhuma motivação pré-concebida, se deleita em mostrar seu mecanismo de busca por um olhar mais profundo acerca das motivações da protagonista, sem contudo ser necessariamente profundo. O ato de olhar de fora, sem preconceitos, e a formação dessas imagens virtuais, nas quais supostamente residiria uma percepção mais reveladora acerca das motivações da protagonista, surgem apenas como um sintoma dessa auto-satisfação de Jovem e Bela em evidenciar os seus próprios mecanismos e ambições. Em todos os três exemplos citados, nos quais aparecem os procedimentos de olhar e de contemplação dessa imagem virtual, o que temos é, num primeiro momento, uma inquietação, que posteriormente não se desdobra em nada, se basta – procedimento fetichizado, extremamente limitado e que se restringe em provocar um choque de percepção rápido e pueril.

Os desdobramentos da trajetória de Isabelle surgem, nesse contexto, como uma espécie de “solicitação urgente” da narrativa, advinda do esgotamento das situações pelas quais ela vai passando. Devido ao olhar que se basta em contemplar o próprio mecanismo, as situações se esvaem, e a evocação dessa imagem que supostamente traria uma compreensão mais profunda, sem preconceitos, acerca de Isabelle, fica somente na evocação, não se concretiza. Assim, a história fica à sorte de todo tipo de clichê, que surgem em forma de pequenas abrupções, alimento perfeito para a sede de Ozon pelos efeitos de choque (o cliente que se apaixona pela prostituta, a morte do idoso durante o programa, a descoberta por parte da família acerca da segunda vida de Isabelle e o encontro com a mulher do falecido, só para ficar em alguns exemplos). A indiferença e a frieza, que outrora engendravam inquietações, se encerram em si mesmas, apenas indicando um desejo de olhar mais profundo.

Ozon aponta a todo momento para uma complexidade dos motivos de Isabelle, mas seu principal recurso é apenas negar os motivos esperados e se vangloriar de seu olhar “justo”.   Talvez não seja o cúmulo do maneirismo paralisante do diretor (feito que pertence, provavelmente, à 8 Mulheres e/ou À Beira da Piscina), mas Jovem e Bela é um filme que se debate e se refestela na sua incapacidade de articular algo sobre sua personagem. 

Guilherme Savioli

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br