Ano VII

O Exercício do Caos

quinta-feira nov 14, 2013

O Exercício do Caos (2013), de Frederico Machado

Há no título de O Exercício do Caos uma dualidade essencial, bem reveladora do olhar lançado aos seus protagonistas (um pai e suas três filhas que vivem em uma fazenda de mandioca no interior do Maranhão) e, por conseguinte, da própria estratégia de apreensão da realidade vivenciada por eles.

Comecemos pela ideia de exercício: tal palavra pressupõe uma forma, um método, um caminho a ser seguido, repetido, em suma praticado. O filme divide-se em partes, a primeira inclusive sendo denominada como “o exercício”, na qual primeiramente acompanhamos a rotina das quatro personagens principais. Aos poucos nesse universo marcado pelo trabalho no roçado, pela produção de farinha de mandioca e por uma situação de quase subsistência, algumas imagens começam a interferir nesse exercício de olhar rígido até então praticado.

Passemos então à segunda ideia do título: o caos. Aos poucos tal rotina começa a ganhar alguns contornos de forças que a regem mas que em um primeiro momento se apresentam aparentemente ausentes da imagem. As duas principais, a saber, são os mitos e folclore locais e as forças patronais que controlam a produção da fazenda habitada pelos protagonistas. A inserção dessas forças na imagem do filme desestabiliza a rotina até então observada e o que era austero e ordenado começa a ser posto em xeque.

Dos mitos e folclores locais a principal invasão/perturbação ao olhar rotineiro até então exercitado virá na história que envolve o sumiço da mãe das garotas. O pai conta às filhas como supostamente sua esposa, ao desobedecer uma tradição local, foi raptada por um vistoso homem de branco. Posteriormente a imagem da mãe raptada se materializa na visão de uma das garotas – o caótico como uma coexistência de eventos temporalmente não coincidentes.

Em um movimento quase que inverso (uma vez que é primeiramente materializado e somente depois contextualizado) as forças patronais surgem como a imagem do capataz à beira da fogueira com a ênfase na textura de sua pele ressaltada pelo fogo, contudo ganha seu devido significado somente a posteriori, quando seu tom ameaçador, de um personagem que está a sondar a família, já está estabelecido. Contudo as verdadeiras forças que controlam a produtividade local permanecem no fora de campo – o capataz, apesar de seu pequeno poder, também se encontra submetido a elas – uma ordem superior que expressa sua opressão àquele ambiente social somente através dos efeitos sentidos nos próprios corpos sobre o qual exerce controle e que de uma forma ou de outra sucumbirão a tal dominação.

Se na mitologia grega o “Caos” é a primeira forma de consciência divina presente no universo, podemos depreender uma ideia semelhante em O Exercício do Caos. A desestabilização promovida pelas forças submersas que se materializam na imagem para além de instaurar um estado no qual confluem eventos que temporalmente não poderiam coexistir, visa também promover uma apreensão daquela realidade que ultrapasse a mera constatação de um ambiente social opressor, buscando, através de uma abordagem existencialista da vida daqueles personagens, alcançar uma espécie de percepção bruta, primitiva, para além de qualquer estigma do olhar que já tenha recaído sobre aquela situação e banalizado a percepção da violência que a recobre.

Dentro de um cenário de cinema brasileiro recente, no qual o olhar para uma situação violenta como a aqui retratada já foi de certa forma banalizado, domado, envernizado, a atitude de O Exercício do Caos é arriscada e louvável. Contudo, nesse seu processo de restituição de uma percepção bruta e originária acerca da situação, de emersão das forças que regem aqueles corpos, promove ao mesmo tempo, com sua abordagem existencialista, uma imersão de outras forças a princípio já estabelecidas pelo olhar, a saber: as forças patronais, tanto a encarnada pelo capataz quanto a pelo patrão presente no fora de campo.

Tal movimento fica evidente na seqüência final, na qual os corpos imersos no movimento caótico se encontram no espaço da igreja. A pressão exercida pelas forças patronais se dilui em conjunto com os corpos regidos. Através de uma mesma textura e presença na imagem ocorre uma espécie de apagamento dos rastros deixados e de uma possível politização do olhar apontada. Assim, o movimento caótico proposto como forma de restituição de uma percepção da violência, uma resistência a uma banalização da imagem, acaba por fim se traindo em seu frenesi.

Guilherme Savioli

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