Os filmes brasileiros que eu vi na mostra
Os filmes brasileiros que vi na Mostra
O cinema nacional nunca foi no seu conjunto tão importante para uma Mostra como foi para esta 37ª. Nunca tivemos uma seleção tão boa de filmes brasileiros a ponto de fazer com que, num cardápio de mais de 350 filmes, eles passassem, como passaram este ano, a programa quase que obrigatório na programação.
Se no ano passado tivemos O Som ao Redor de Kleber Mendonça Filho e O Que se Move de Caetano Gotardo como dois dos melhores filmes do evento; este ano podemos listar pelo menos 10 filmes que aparecem em várias listas como destaques da 37ª Mostra, filmes premiados em festivais estrangeiros e nos festivais de Brasília, Gramado e Rio de Janeiro que passaram em São Paulo pela primeira vez e que fizeram muitos cinéfilos deixarem de usar aquela velha frase: “brasileiro eu vejo depois, quando estrear”.
Consegui ver parte destes filmes: Tatuagem, de Hilton Lacerda; Os Amigos, de Lina Chamie; Depois da Chuva, de Cláudio Marques e Marília Hughes; Exilados do Vulcão, de Paula Gaitan; Amor, Plástico e Barulho de Renata Pinheiro; Riocorrente, de Paulo Sacramento; Avanti Popolo de Michael Wahrmann; O Lobo Atrás da Porta, de Fernando Coimbra e Educação Sentimental, de Júlio Bressane.
Perdi, entre os mais importantes: O Jogo das Decapitações, de Sergio Bianchi; Bruta Flor do Querer, de Andradina Azevedo e Dida Andrade; Uivo da Gaita, de Bruno Safadi; O Rio que nos pertence, de Ricardo Preti; O Exercício do Caos, de Frederico Machado e Morro dos Prazeres de Maria Augusta Ramos.
Seria difícil e muito provavelmente pouco produtiva uma análise destes filmes em seu conjunto. Tem-se temáticas e formas diferentes, sepultando muito provavelmente, como já foi apontado em outros lugares, e inclusive no dossiê cinema brasileiros dos últimos 20 anos desta mesma Interlúdio, a tendência, sempre presente na historiografia do cinema brasileiro de juntar filmes em ciclos e pacotes nos quais eles tenham um significado mais uniforme. Estes filmes da safra 2013 da Mostra são enormemente dispares e apontam para caminhos diversos.
Poder-se-ia pensar ainda em separar alguns filmes dado o estado de produção, mas tal classificação mais fecha os filmes a espaços e cinematografias do que abre suas possibilidades de leitura. Longe, portanto, de querer circunscrever tais filmes ao que quer que seja, o que pretendo aqui é esboçar em poucas linhas um primeiro, rápido e não muito elaborado contato que a Mostra proporcionou com estes filmes, primeiras impressões que poderão ou não ser validadas numa segunda ou terceira visão tão logo cheguem ao circuito, o que já está acontecendo, diga-se.
Educação Sentimental, de Júlio Bressane. Bressane a cada filme confirma a tese de muitos, inclusive do amigo Sérgio Alpendre, que aquilo que ele faz não é cinema, é algo muito além do cinema, um cinema maior e um cinema que parece estar com os dias contados. Filma em película e aproveita cada grão da imagem para construir seu universo particular, flertando sempre e de forma nostálgica com o universo da arte em seu estado mais bruto, mais inventivo e mais primitivo no sentido de essencial. Bressane sempre me faz lembrar as aulas de literatura grega com o saudoso Antonio Medina Rodrigues, que, aliás, o auxiliou no seu Brás Cubas, quando este dizia que uma obra clássica é simples e tudo nela converge para um ponto comum. De certo modo, o cinema de Bressane é simples; e simples porque é puro, porque volta a si mesmo, porque explora as possibilidades da palavra/imagem e a possibilidade de experimentar/narrar de maneira sempre lúdica. Não à toa temos no final de seus filmes recentes imagens do processo de feitura dos filmes e todos os rostos ali mostrados se assemelham a de crianças em estado de transe com um brinquedo novo. Ver um filme de Bressane, ainda mais na já saudosa película, remete a esse universo mágico, lúdico, de pura fruição, de puro deleite visual, estético, narrativo. Tristes aqueles que não conseguem usufruir da magia que o seu cinema evoca.
Avanti Popolo de Michael Wahrmann. Ver Carlão Reichembach imenso na linda tela do Cinesesc, casa dele Carlão e do seu Comodoro, foi e é o presente dos presentes para qualquer pessoa que teve a sorte de conviver com uma pessoa de tamanha generosidade. Devo isso à Mostra. As cenas finais do filme de Wahrmann quando imagens em super 8 se fundem à imagem do cineasta, que diz ver tudo cinza, e a uma parede descascada ficam como as imagens mais marcantes e poéticas do evento.
Avanti é um filme que se constrói do nada, que se anuncia aos poucos, que se procura enquanto filme como o taxi à deriva no início até achar o personagem. “Isso não é um filme”, dirão muitos. Não é, posso até concordar num primeiro momento, mas torna-se e torna-se com toda força se a cada imagem nos permitirmos compartilhar da relação daquelas tristes figuras e do nostálgico mundo que habitam. Aquela casa não existira mais, aqueles filmes desaparecerão, como desapareceram Carlão, os perseguidos pela ditadura militar, a União Soviética, o sonho comunistas e outras belas narrativas e figuras que eram prenhes de sentido. Ainda assim, avanti, é preciso seguir, e pode-se seguir – talvez seja esse o mais belo ponto do filme – com poesia, sem perder a ternura, com enorme carinho em relação àqueles que se foram e que levaram consigo boa parte da nossa história. O cinema que grita ainda em Bressane, aqui também grita, e em ruínas, se mostra presente, ou melhor, das ruinas se faz presente.
Tatuagem, de Hilton Lacerda. Um dos maiores roteiristas do cinema brasileiro recente, Hilton estreia na ficção com um filme que é a sua cara: cheio de energia, de luz e transbordante de afeto – roubo dele o termo que usa para anunciar o filme, e roubo porque o filme é, de fato, uma explosão de afeto. Mais que apenas bonito, o que impressiona em Tatuagem é a forma colorida e alegre pela qual o filme retrata um universo que poderia não sê-lo: universo de seres à margem, artisticamente e sexualmente, num momento em que o Brasil estava totalmente à margem, sufocado pela ditadura. Hilton cita Lira do Delírio e mais uma vez, como é de costume, usa bem as palavras para dar o contorno da sua obra; talvez nenhum outro filme tenha conseguido, como Tatuagem, se aproximar da beleza da entrega dionisíaca do filme de Walter Lima Junior, entrega muito brasileira, se é que é possível definir o que isso seja. Além dessas imagens, cujo fluxo na tela é arrebatador sempre, há no filme uma verdade dos personagens que só bons atores e um bom diretor de atores conseguem. Para não dizer apenas bem do filme, preciso revê-lo para tirar a sensação – ou não -, de que no final há uma amarração das situações que é tudo que o filme não é, meio careta, e careta porque fecha sentidos.
Amor, Plástico e Barulho de Renata Pinheiro. A maior surpresa entre os brasileiros da Mostra dada a sensibilidade com que retrata suas personagens e o universo do tecnobrega. Não é só a atuação magistral de Maeve Jinkings e Nash Laila que agigantam o filme, mas a atuação da câmera, a direção de arte, os cenários, toda uma semiosfera articulada para dar conta de um contexto social muito próprio e quase sempre, quando visto e representado, carregado de pré juízos e preconceitos. O popular aqui é retratado como em Falsa Loura de Carlão Reichembach, com ternura de quem olha para as pessoas buscando aquilo que elas são.
Riocorrente, de Paulo Sacramento. Diretor do antológico documentário Prisioneiros da Grade de Ferro, Sacramento, depois de um longo hiato na direção, finalmente estreia na ficção. Como poucos, e desde os curtas, ela sabe como filmar São Paulo e os paulistanos, não há cacoete algum visando publicizar a imagem da cidade, muito menos suavizar a imagem dos que a habitam, não há enfeite, é a cidade na sua crueldade habitual, pegando fogo e enlouquecendo os que nela estão. Gosto muito da segunda metade do filme, quando tudo parece sair do eixo definitivamente, e a cidade, como o filme, explode. A questão que fica é até que ponto é possível fugir de alguns clichês que dão conta dos personagens paulistanos: a garota perdida, o marginalzinho e o playboy meio intelectual. Mas talvez não dê porque seja, de fato, assim, uma coisa que pode parecer caricata, mas que talvez seja mais real do que gostaríamos que fosse. Riocorrente ainda não é o filme, mas é um filme que pode levar Sacramento ao filme, sobre São Paulo, como São Paulo S/A, nosso monumento maior.
O Lobo Atrás da Porta, de Fernando Coimbra. Vi O Lobo… numa sessão extremamente injusta com o filme no Arteplex Itaú 5, mancada grande da Mostra, que programou o filme para uma sala que não tinha a janela ideal para projetar o scope do filme, reduzido a um corte retangular na tela que lhe diminui a dimensão e certamente o impacto. Portanto, o filme que vi projetado não é o filme que foi planejado. Mas é possível dizer, ainda assim, que é o típico filme que prende a atenção do espectador do começo ao fim, que amarra o sujeito na tela porque é muito amarrado na sua execução e nas suas partes. Volto a ele quando estrear e puder ver de forma correta.
Exilados do Vulcão, de Paula Gaitan. Não conheço os trabalhos anteriores de Paula Gaitan, e é inegável que Exilados tem belo momentos, com planos muito bem construídos e pensados, mas não sou entusiasta do filme. Não consegui ir além da apreciação dos planos isolados, não consigo relacioná-los na articulação do filme e, além disso, me senti incomodado com uma atmosfera exageradamente fria do filme na sua concepção, nos poemas e músicas que traz e torna tudo tão estrangeiro e talvez não tão exilado. Durante toda projeção, tentei me aproximar do filme, que não me capturava e mais me afastava dele e dos personagens, ainda que achasse e fruísse algumas imagens belas.
Depois da Chuva, de Cláudio Marques e Marília Hughes. O filme tem algo louvável: retratar os anos das Diretas Já, a eleição e morte de Tancredo. Lembro apenas de Patriamada de Tizuka Yamazaki que registrou tal época e o fez no calor da hora. Mas pouca coisa me chama a atenção no filme, além do contexto histórico, o jovem ator, alguns planos. Sobre o contexto histórico, ele é a todo tempo referenciado de modo um tanto anacrônico, visto pelo filtro do presente, de todo um tempo posterior e de vários fatos que sucederam àquele período de tamanha incerteza. No discurso do grupo “anarquista” cheio de certezas em relação ao futuro isso também aparece de maneira clara. Uma opção que me desagrada, pois é como se alguém naquele momento soubesse mais do que se poderia saber à época e esse alguém é, sobretudo, o filme. No mais, a construção do filme para o seu desfecho é também frouxa, previsível e descompassada, vide a cena na grande “usina” abandonada. É preciso ver o filme fora da maratona, sem o cansaço da Mostra, mas a primeira visão não foi das mais alentadoras.
Os Amigos, de Lina Chamie. Vi Os Amigos mais para ver meu sobrinho Lucas em cena, na sua estreia no cinema, do que como crítico curioso com um filme novo. Lucas é um dos atores do filme, faz Théo, o personagem de Marcos Ricca, na infância. Assim sendo e sendo tio coruja, não posso falar do filme.
Cesar Zamberlan
© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br