Jogo das Decapitações
Jogo das Decapitações (2013), de Sérgio Bianchi
Desatento Jogo das Decapitações não é. Pois seu universo de interesse – a perpetuação de processos violentos ao longo da história brasileira e quais são as variáveis envolvidas ao dar-se mais atenção a essa ou àquela violência – é atualíssimo. Não falta matéria ao longa de Sérgio Bianchi, ainda mais se olharmos para o filme tendo na memória os protestos pelo Brasil desde junho.
Vejamos: está claro que o filme insere-se na matéria do contemporâneo ao apontar suas flechas para o Brasil pós-chegada da esquerda – ou do que restou dela no processo de conciliação lulista – ao poder. Leandro, o protagonista, está ligado – e gradualmente ficará dividido – entre dois mundos: o de sua mãe, militante torturada na Ditadura Militar, hoje ongueira; o de seu pai Jairo, artista iconoclasta que supostamente é assassinado numa rebelião de presos no começo do filme.
O arco do filme está nessa ida de Leandro de um polo a outro, tendo como grande pretexto a realização de um mestrado sobre o período da Ditadura – o primeiro plano é do filho escutando a mãe tentando explicar, numa grande planilha, todas as ramificações dentro da esquerda, sejam as que se engajaram na luta armada ou não.
Jogo das Decapitações não é, porém, um filme sobre as mazelas da Ditadura. É, na verdade, um bombardeio contra o que assume ser a história oficial. Até aí, Bianchi está próximo de Tatuagem em seu desejo de deslocar o eixo histórico de análise do Brasil e depositar sua atenção aos desviantes. Em vez da esquerda tradicional – representada na figura da mãe –, um olhar para o desbunde, uma aproximação à iconoclastia
Ao se negar a aceitar as palavras da mãe – “esqueça o Jairo, ele não é importante”, frase que está longe de ser ocasional e revela uma maneira de hierarquizar o passado recente brasileiro –, Leandro se aproxima mais da Polca do Cu de Tatuagem. Mas aí vem o cinto que aprisiona o filme, que lhe causa asfixia cênica – roubando a definição de Francis Vogner no texto “Sob o peso da força”, recentemente publicado na Revista Cinética. Jogo das Decapitações, em sua encenação, quer se aproximar de Jairo (desbunde), mas jamais faz menção em realmente se libertar do eixo materno no filme.
Jogo das Decapitações abre com um efeminado Sérgio Mamberti explicando, com olhar lânguido, como preparar um coquetel molotov – plano, aliás, retirado de Maldita Coincidência (1979), primeiro longa de Bianchi, recuperado com frequência como peça de memória e autorreferência neste novo filme. Essa promessa de desbunde trazida no primeiro plano não se cumpre: o filme está subordinado à necessidade de ilustrar e didatizar sua matéria.
Sobram ilustração, explicação. Cinema de demonstração. Atores a serviço de personagens que se posicionam para o espectador como gigantes notas de rodapé, encorpando uma decupagem tensa, tesa. Fala-se de maneira a ilustrar a matéria, nunca de vivê-la intensamente. O filme carrega o desejo de abalar as estruturas como uma metralhadora giratória, mas o olhar de Bianchi não se deixa permear.
Falta, pois, menos desejo de demonstrar e mais capacidade de mostrar. Bianchi critica a história oficial e, por consequência, uma estética oficialesca e o cânone. Ótimo, um bem-vindo approach.
Mas essa contradição da ausência de arejamento está justamente na penúltima cena – a do teatro – em que o amigo de Jairo “ensina” teatro para a população carente que “em termos de política ainda está no século 18” (ou algo assim). Fazendo teatro engajado, o personagem canta uma música de conscientização que é recebida com bocejos e indiferença por uma plateia jovem.
Trata-se da mais emblemática cena do filme. Não estivesse Jogo das Decapitações mergulhado na mesma letargia cênica que ele crítica ali, tal passagem seria genial. Mas como o filme está sempre correndo atrás da demonstração, de ilustrar, tal cena perde seu potencial crítico e se torna uma caricatura indireta das próprias limitações da mais recente obra de Bianchi.
Heitor Augusto
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