Centro Histórico
Centro Histórico (2013), vários diretores
Antes da exibição de Centro Histórico, seu produtor, Rodrigo Areias, anunciou que os quatro cineastas que compõem esta homenagem à cidade portuguesa de Guimarães, tiveram total liberdade temática, sendo que a única limitação respondia à ordem orçamental. Ao vermos estes curtas-metragens, no entanto, são por demais claros os traços melancólicos que os permeiam – a memória, a História – para considerarmos uma coincidência. No limite, podemos afirmar que os filmes daqui são assombrados por fantasmas. Vejamos caso a caso, seguindo a ordem de suas exibições. Comecemos, portanto, com O Tasqueiro, de Aki Kaurismaki, onde um solitário taberneiro, faz-tudo de um pequeno restaurante, tenta atrair clientes a seu modesto estabelecimento, imitando as sugestões do cardápio vizinho. Será que irão atender às súplicas de agrado deste homem?
Quem já viu qualquer título assinado “Kaurismaki”, de imediato irá reconhecer o tom agridoce deste conto humanista, bem como a compaixão por suas inexpressivas personagens mudas e o clima atemporal – cortesia de um estilizado trabalho com as colorações da fotografia, do figurino e da direção de arte. Como sempre, pensamos em Keaton (no rosto inabalável de seu protagonista), em Ozu (na imensa simplicidade narrativa), em Tati (na inadequação de suas personagens ao mundo moderno), em Bresson (na ênfase dos objetos em cena). Em comum entre eles, a precisão absoluta ao revelar um mundo em constante movimento que, neste curta, deixará sempre a personagem que o nomeia a sós, esperando, primeiramente, os clientes deste condenado restaurante, depois, uma companheira para um baile e, por último, a eventual visita de um gato, que poderá enfim servir-se do afeto desta melancólica figura, ignorada sucessivamente ao longo deste dia retratado.
Tão facilmente reconhecível é o segmento de Pedro Costa, Sweet Exorcist, a começar por seu protagonista, Ventura. Aqui, ele se encontrará na maior parte do tempo preso em um elevador hospitalar, confrontando-se com uma estátua viva de um soldado do Movimento das Forças Armadas, do 25 de Abril, e com a ausência de um antigo amor. Se Costa sempre foi hipnótico e, de alguma maneira, fantasmagórico, seu apreço pela escuridão da noite ajuda-o a realizar uma de suas mais assombradas obras: o delírio de Ventura transborda o horror dos acontecimentos fora do quadro e do tempo (os seus próprios e aqueles do país em que reside), e o seu confinamento pelas paredes metálicas do elevador pintam, com luz e sombra, as forças de um passado que ainda ecoa, vivo, através de uma atordoante banda-sonora, transformando os limites espaciais do local, em um infinito campo de batalha.
Poucas vezes pudemos sentir o peso da História sintetizado em apenas uma personagem, e a febre de Ventura carrega consigo as trevas de todas as trincheiras do mundo.
Se o filme de Pedro Costa é o melhor entre os presentes, o de Victor Erice, Vidros Partidos, é o mais salutar, uma vez que seu diretor converte Terrence Malick em um cineasta tão prolifico quanto o foi R. W. Fassbinder. Entre os seus pouquíssimos trabalhos, conheço apenas O Espírito da Colmeia, e isso já me é suficiente para colocá-lo entre os grandes de seu país, a Espanha. Aqui, sua abordagem é das mais simples e o resultado, extraordinário: através de depoimentos dos antigos funcionários de uma grande fábrica de tecidos, hoje inativa, Erice caminha lentamente ao sublime, no momento em que, ao som de um acordeão, ganha-se vida, em nossa imaginação, cada um das centenas de trabalhadores sentados no refeitório, registrados em uma enorme fotografia em preto e branco, pendurada nas ruínas deste galpão desativado. Com isso, Erice realiza um complexo e arriscado trabalho de subtração, fazendo mágica através do artifício.
Após estas duas porradas consecutivas, Manoel de Oliveira chega com uma graciosa lamúria: O Conquistador Conquistado. Espécie de Viagem ao Princípio do Mundo às avessas, o mestre português – novamente com o grande Ricardo Trêpa à frente –, acompanha um grupo de turistas em um City Tour por Guimarães. O ápice do passeio é no encontro dos visitantes com a estátua de D. Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal. O título do segmento é a dica à compreensão desta irônica visão de Oliveira ao local que reservamos à História – e a maneira pela qual ela é hoje apreciada, em nossas férias de verão.
Entre estas coletâneas que celebram cidades, Centro Histórico é disparado a melhor. Com os nomes dos cineastas envolvidos, tal juízo jamais poderia soar surpreendente, mas é sempre bom confirmarmos tamanha expectativa.
Bruno Cursini
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