Os Suspeitos
Os Suspeitos (Prisoners, 2013), de Denis Villeneuve
É preciso despir-se dos preconceitos contra o diretor canadense Denis Villeneuve (preconceitos que ele ajudou a criar com filmes medíocres como Redemoinho) para encontrar uma construção dramática digna de respeito em Os Suspeitos. O roteiro do quase calouro Aaron Guzikowski é cuidadoso ao plantar os diversos ganchos narrativos de modo pouco evidente (ou ao menos pouco forçado em comparação ao habitual em Hollywood) e na distribuição da tensão entre diversos personagens. O que poderia pulverizar os momentos climáticos acaba fortificando-os, porque a cadeia de violência e bizarrice só aumenta à medida em que cresce o desespero do protagonista. A direção controla bem o ritmo, e por isso não ficamos em paz durante os 150 minutos de filme (desde que, como dito, vençamos a etapa da desconfiança autorista). A interpretação de Hugh Jackman, ator agora mais conhecido como Wolverine, mas que já foi chamado de novo Clint Eastwood (comparação aqui mais pertinente) dá conta muito bem de um personagem fracassado que tem um surto de violência após o rapto de sua filha e de uma amiga; Jake Gyllenhaal está estranho (o que neste caso ajuda) como o policial encarregado da investigação, e Maria Bello se equilibra muito bem entre o trauma e a resignação, e depois o alívio. Desse modo, equilibrando-se numa estrutura que esconde bem os deslizes e catalisa os acertos, o filme demonstra que um diretor normalmente afetado, quando contido, pode render bem trabalhando com o vento a favor.
Vamos a alguns pontos:
a) transmissão de tensão entre os personagens: é como uma cadeia em que a tensão vai se espalhando como uma praga, atingindo a todos os personagens importantes da trama, desde os pais de Anna e Joy (as crianças sequestradas que conhecemos), até o chefe de polícia e o detetive, que não consegue disfarçar sua tensão interna com a máscara da frieza investigativa, visto que seu tique nervoso é perceptível desde sua primeira aparição (e parece aumentar conforme o filme avança). Essa tensão que se espalha é melhor combatida por alguns personagens, como por exemplo o pai da pequena Joy, vivido por Terrence Howard. Ele parece ainda manter um nível de civilidade mínima, imune à selvageria que se instala. Ainda assim, todos os personagens são vistos, em algum momento, explodindo, rompendo a casca que os fazia serenos, bons cordeiros da sociedade. Há um Charles Bronson em cada um de nós.
b) o gancho do apito vermelho: algo que me parece associado ao bolinho que o personagem de Mark Ruffalo adora em Zodíaco (com o qual Os Suspeitos tem algumas ligações evidentes). Tal apito funciona parte como um McGuffin, parte como o gancho definitivo para que o último nó se desate na trama. McGuffin, vale lembrar, não é simplesmente o motivo pelo qual a narrativa avança, mas, principalmente, um elemento que interessa apenas aos personagens, não ao espectador. Evidente que os McGuffins hitchcockianos são muito mais inteligentes, e, como disse, o apito é apenas em parte um McGuffin. Mas durante muito tempo esse elemento nos soa intrusivo, desnecessário para entendermos o que se passa e para a própria trama, para depois se revelar um importante artifício, deixando de ser um McGuffin. Seria inicialmente um objeto que só interessa a uma criança específica, vítima de sua condição infantil.
c) o gancho escondido de uma reação: trata-se da reação da tia de Alex à menção da palavra labirinto por Keller. Tal reação, só perceptível, talvez, pelo espectador que já desconfiava dela (não serão poucos, pois basta um certo conhecimento de filmes para se preparar nesse sentido), revela algo que confirmaríamos minutos depois (tendo a inevitável cena de confronto (um tanto pobre dentro da estrutura, mas encenada de maneira eficiente). A reação, no entanto, é escondida o bastante para deixar algumas sombras, aumentadas pela confusão de personagens que aparecem e desaparecem, suspeitos e descobertas da polícia (entre as quais a do sangue de porco recebe pouca ênfase, o que atribuo a uma ideia inteligente de Villeneuve ou do roteirista Guzikowski).
d) o uso de elipses: Villeneuve arrisca-se em elipses que podem afastar o espectador, em vez de deixá-lo intrigado. Algumas delas, sobretudo as do miolo, revelam mais uma vontade de jogar arbitrariamente com a narrativa do que uma consciência do que se deve ou não mostrar. No entanto, é com uma elipse brilhante que o filme se encerra. Uma elipse que se situa entre o último plano e os créditos finais e nos obriga, com isso, a construir mentalmente um percurso que aconteceria após a imagem derradeira do rosto do detetive, após a certeza de que não era fruto de sua imaginação o pequeno e agudo ruído que chegava das profundezas.
e) trauma e superação: não é tanto de pedofilia que fala Os Suspeitos, mas de traumas e superações. Alex, o personagem de Paul Dano, nunca se recuperou do trauma de ter sido raptado, e continua com a idade mental de quando se iniciou sua desgraça. Keller (Hugh Jackman) nunca superou o suicídio do pai, mas represa sua energia para o bem de seus filhos, sobretudo da pequena Anna, que será logo raptada. Na menor hipótese de ter encontrado o suspeito ideal, sua energia represada explode para a infelicidade de Alex, o bode expiatório (Alex é visto maltratando um cachorro, o que na mente de Keller, e um pouco na nossa, é um indício de que alguma culpa ele pode ter). A energia represada do detetive Loki (Gyllenhaal) também seria dispensada a qualquer momento, o que finalmente acontece no interrogatório que leva um dos suspeitos ao suicídio, arma disparada na boca diante dos policiais. Tal solução, movida pelo desespero e pelo trauma, levará o detetive a outra explosão, que desta vez atinge apenas os objetos de seu escritório.
Cinco pontos, entre outros possíveis, de um labirinto cuja solução pode salvar vidas.
Sérgio Alpendre
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