Lições de Harmonia
Lições de Harmonia (Uroki Garmonii, 2012) de Emir Baigazin e Maria Florencia Álvarez
Na primeira sequência de Lições de Harmonia, Aslan ajuda a avó a sacrificar um carneiro. Ele mata o animal, depois, juntos, tiram o pelo e separaram a carne. O ritual, ainda que possa chocar os mais sensíveis, nos é apresentado como algo típico de uma área rural, como um processo comum, uma atividade inserida na cultura. À primeira vista, temos mais um filme sobre um universo exótico, com uma pegada mais etnocêntrica e um cuidado formal na construção dos planos. Ledo engano.
Os ritos seguintes mostram a inserção do jovem a um outro universo: o universo escolar, o universo do saber, universo da razão, a crueldade e perversidade começam a aparecer e o filme suavemente entra num espiral no qual a maldade humana atinge limites inimagináveis. O que aproxima o filme do cineasta do Cazaquistão e da codiretora da Argentina, por incrível que pareça o paralelo, das teorias de Machado de Assis no conto “A Causa Secreta”, levado ao cinema no Brasil por Sérgio Bianchi e depois por Júlio Bressane.
Coincidência ou não, Aslan, como o personagem de Machado de Assis, a partir do momento que começa a enveredar pelo território racional e cientifico começa a relacionar cada vez mais tais experimentos à dor e perversidade humanas. Vítima de um grupo de jovens que extorque e maltrata os alunos da escola, Aslan passa a arquitetar uma vingança ou, se quisermos, um guia de sobrevivência em meio à selvageria instalada e mirada contra ele. Sua defesa contra o mundo que o oprime traz à tona uma violência insuspeita, o mal que parece estar em cada um de nós, ainda que adormecido como um vulcão.
Mas a violência em Lições de Harmonia não é explicita ou pornográfica, é também perversa, sádica, e sem ser oportunista; é calculada plano a plano, despejada a conta gotas sobre cada cena com maestria.
E se, num primeiro momento, o esmero formal parece buscar uma linha de cinema de arte tipo exportação, o que fica claro na sequencia do filme é que a composição dos planos parece obedecer, também, a uma lógica perversa e patológica, a lógica que perpassa o olhar do personagem, o encantador e assustador Aslan, que obcecado por formas simétricas e pela assepsia, luta para limpar de si e do ambiente à sua volta a sujeira do mundo.
Lições de Harmonia não trata da maldade de uma gangue infantil, não aborda o bullying ou um personagem que tem sintomas claros de Transtorno Obsessivo Compulsivo. Não se reduz a nenhum tipo de diagnóstico ou sintoma particular, e de certa forma facilitador, trata de algo mais universal: a propensão do homem ao mal, à doença, à perversão; aponta para a maldade inerente e para a qual não há remédio algum e da qual não escapamos, como não escapará a ovelha do início do filme.
A harmonia do título é um modo irônico de contestar o nosso fracasso enquanto animais que se acham superiores por serem dotados de razão ou, mais que isso, animais que não encaram a sua verdade, a sua questão humana. A alusão ao título do filme de Nicolas Klotz não é à toa, porque, tanto as sessões de tortura, a falta de justiça, como a busca pelo equilíbrio e formas puras e assépticas, remetem ao maior delírio da humanidade, momento em que todo esse fracasso aflora de maneira inconteste, e dolorosamente humano.
Cesar Zamberlan
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