Ano VII

Cinco dias no Festival do Rio 2013

segunda-feira out 14, 2013

BALANÇO FESTIVAL DO RIO

POR SÉRGIO ALPENDRE

CINCO DIAS NO FESTIVAL DO RIO 2013

É incrível como a maioria dos cinéfilos se guiam por premiações em festivais internacionais. É comum ouvirmos nas filas dos festivais do Rio e mostras de SP: "esse filme deve ser bom, ganhou Veneza", ou "quero ver esse filme porque ganhou Berlim", ou qualquer coisa desse gênero. Bom, pessoalmente acho que há muito as premiações nesses festivais grandiosos deixaram de fazer sentido como parâmetro do que se deve ver. Vejamos, por exemplo, uma lista dos últimos cinco premiados com o Leão de Ouro de Veneza:

2009: Lebanon, de Samuel Maoz

2010: Um Lugar Qualquer, de Sofia Coppola

2011: Fausto, de Alexander Sokurov

2012: Pietá, de Kim Ki-duk

2013: Sacro Gra, de Gianfranco Rosi.

Bons diretores como Sokurov e Coppola foram premiados com filmes menores em suas respectivas carreiras. Pietá dispensa comentários de minha parte, já que Kim Ki-Duk nunca me enganou, nem na época de A Ilha. Lebanon pode até ser interessante, mas não dá para imaginar uma premiação séria com ele no topo. Sacro Gra eu não vi, mas os relatos decepcionados demonstram o enorme valor que se dá ao Leão de Ouro, mesmo após o escândalo de terem premiado Pietá. Sei que os jurados são outros, com diferentes orientações. Não esqueci ainda que nos anos anteriores aos pinçados acima bons filmes foram premiados (O Lutador, de Aronofsky; Lust: Caution, de Ang Lee, mais o excelente Em Busca da Vida, de Jia Zhang-ke). A questão, contudo, persiste. Por que é tão importante ver um filme premiado? Por que uma legitimação tão questionável é considerada?

A divagação acima foi feita como um preâmbulo, para informar o leitor destas rápidas notas que minha preferência ao escolher os filmes que verei nos festivais segue a seguinte ordem:

1) Revisão de filme amado, principalmente se for em cópia restaurada ou película.

2) Desejo de conhecer um filme recente de algum diretor admirado.

3) Revisão de filmes que não vejo há muito tempo, principalmente se for em cópia restaurada ou película.

4) Revisão de algum filme recente de algum diretor admirado (como na Mostra passada, quando vi O Gebo e a Sombra duas vezes, perdendo, com isso, pelo menos dois filmes sobre os quais eu tinha alguma curiosidade).

5) Desejo de conhecer algum filme recente que foi elogiado por alguém confiável.

6) Intuição.

 

Dia 1: Sunhi, princesa das ostras e Mishima

Três filmes: um recente, um de quase cem anos atrás, outro datado no maneirismo oitentista. A meu ver, essa costura entre diferentes contextos históricos e cinematográficos é o que mais vale a pena de se fazer num festival como o do Rio, que alterna retrospectivas com sessões de clássicos restaurados e as últimas novidades mundiais. Mais, certamente, do que preencher buracos com filmes obscuros, apostas que geralmente revelam-se belas furadas.

O recente, nesse caso, está longe de ser uma furada. É Our Sunhi, de Hong Sang-soo. Não sou um dos maiores entusiastas do diretor coreano, mas o fato é que não há um filme ruim sequer em sua filmografia. Do mesmo modo que não há uma obra-prima, embora Turning Gate e Conto de Cinema estejam próximos disso. Hong Sang-soo é tipo o Ramones do cinema, no sentido de que faz sempre o mesmo filme (já fiz essa comparação em outro lugar, logo, eu também posso ser acusado de escrever sempre o mesmo sobre ele). No filme há uma relação professor-aluna, com todas as implicações éticas possíveis. Sabendo disso, o humor todo reside na tentativa do professor de mascarar o interesse que ele sente pela aluna, criando com isso algumas situações incômodas, como a sequência final ilustra muito bem.

A Princesa das Ostras, de Ernst Lubitsch, é um dos filmes responsáveis pela célebre expressão "o toque de Lubitsch". Data de 1919 e tem uma série de impressionantes gags visuais, das quais minha preferida é aquela em que o amigo de um príncipe pobre espera numa antessala pelo banho da filha de um magnata. Como o banho é deveras demorado, ele começa a brincar com os desenhos do chão, numa coreografia marcada pelo ridículo e acentuada pela montagem paralela. Fora que o filme serve como aula (como todos os que Lubitsch fez depois deste) de posicionamento da câmera para flagrar o ator em seu movimento mais engraçado ou em sua relação com o espaço.

Completando o dia, consegui rever Mishima – Uma Vida em Quatro Tempos, filme de Paul Schrader que eu amava quando no início da cinefilia, e que agora me pareceu gélido, um tanto amarrado formalmente, ainda que seu trabalho de composição seja louvável. Produzido por Francis Ford Coppola e George Lucas, filmado no Japão, com atores e diálogos japoneses, é uma dessas aberrações que ainda eram possíveis nos menos permissíveis anos 1980. Uma coisa que não se pode negar a Lucas e Spielberg: com o poder que conseguiram, defenderam ousadias das mais diversas feitas por diretores sem muito cacife na indústria (como Spielberg, que bateu o pé com os chefões da Warner para que a visão demolidora de Joe Dante fosse mantida em Gremlins). Schrader contou com a audácia do poderoso George Lucas para fazer esse passeio pela vida e obra de Yukio Mishima, reproduzindo em cena parte do média realizado pelo autor em 1966, Yukiko – Rito de Amor e de Morte, única incursão de Mishima no cinema.

Dia 2: um superestimado e uma obra-prima

Sobre Gravidade, de Alfonso Cuarón, já escrevi para o Guia da Folha. Por aqui reitero que trata-se, sim, de um filme digno, com uma boa noção de ritmo e efeitos especiais que, afinal, não incomodam. Mas o filme tem sido saudado como o novo 2001 – Uma Odisseia no Espaço, e aí a coisa já começa a ficar doentia. Alguns críticos adoram ser surpreendidos pela tecnologia, como crianças diante de um novo mundo. Deveriam buscar a maravilha em outro lugar.

Em O Imigrante, por exemplo, o novo filme de James Gray. Basta uma imagem para constatarmos que não estamos diante de um filme qualquer: a Nova York que se esconde por trás de uma névoa espessa, e recebe hostilmente a imigrante polonesa Ewa (Marion Cotillard), levada por outro imigrante, o judeu Bruno (Joaquin Phoenix). Tudo é hostil porque "não existe bondade em pessoa alguma", segundo Bruno, numa fala proferida em momento tal que é bem possível estarmos com um travo na garganta, num choro que está prestes a explodir, sentimento compartilhado por Ewa, pouco antes do antológico plano que encerra o filme.

O Imigrante é marcado pela tonalidade sépia, se não fomos traídos pelo DCP. É uma maneira de voltar aos anos 1920, quando se passa a história. A composição das imagens é barroca, mais que em Caminho Sem Volta. Gray alterna procedimentos clássicos e modernos com uma habilidade que remete a alguns dos maiores diretores do passado: King Vidor, John Ford dos anos 1930 (o Ford mais barroco, como lembra o Ernani Bessa), Carl Dreyer, e até um pouquinho de Max Ophuls. Mas a febre referencial não pode macular este artista único e soberano do cinema contemporâneo, um dos poucos cuja obra integral encontra uma incrível organicidade de tons e temas. O Imigrante pode ter um orçamento maior do que nunca no cinema de Gray, mas sua assinatura está presente em cada plano. É necessário e obrigatório voltar ao filme futuramente.

Dia 3: outro Hong Sang-soo e Abuso de Vulnerabilidade

Vulnerável é o filme de Catherine Breillat. Relato autobiográfico – Breillat realmente sofreu um derrame em 2004. Mas em que medida tudo isso aconteceu de fato? A cineasta realmente se envolveu com um canalha? Realmente assinou 16 cheques nominais para ele? Se a questão foi fazer um mea-culpa, como a olhada final de Huppert para a câmera indica, não há um certo sadismo em fazer-nos seguir uma mulher debilitada e completamente entregue a um vigarista da pior espécie? Mais do que essas incongruências, são alguns detalhes que incomodam ainda mais. A mim incomodou incrivelmente aquela vibração de celular em quase todos os momentos em que a personagem estava na cama, dormindo. Para que a insistência em mostrar que ela é procurada até mesmo durante o sono? Aliás, nunca entendi o porquê de as pessoas deixarem seus celulares ligados  enquanto dormem. Como nunca vou entender como as pessoas veneram esse objeto como um Deus. Ao menos não ouvimos um desses toques bregas que poluem os ambientes públicos. Nem no filme, nem na plateia.

O outro Hong Sang-soo é A Filha de Ninguém, que a California planeja lançar em circuito comercial já em dezembro deste ano. Como foram dois os filmes do diretor exibidos nesta edição, ocorreu o inevitável fla x flu entre os frequentadores. A maioria diz preferir Our Sunhi, que é de fato mais engraçado. Não sei. O plano mais belo entre os dois filmes é o que encerra A Filha de Ninguém. Logo, no mínimo, há um empate técnico.

Dia 4: Milius

Muito trabalho e pouca diversão fazem de Sérgio… Não me arrependo de ter visto apenas um filme na quarta-feira em que os três filmes que mais me interessavam passavam no mesmo horário. Estava com trabalho acumulado. Optei pelo documentário Milius, de Joey Figueiroa e Zak Knutson, por ser o que passou mais perto de onde estava hospedado, em Botafogo, deixando para trás as cópias restauradas de Bonequinha de Seda, de Oduvaldo Viana, e do monumento A Última Gargalhada, de Murnau.

Milius é um extra de DVD, tão claramente que todos devem ter pensado isso durante a sessão. Como o retratado é um grande diretor e uma grande figura, ver pouco mais de uma hora e meia de suas histórias é das coisas mais prazerosas que se pode fazer num festival. Lembrou o dia em que eu, Chiko Guarnieri e Guilherme Martins demos uma trégua à programação de um festival passado para ver um documentário sobre George Michael, outro gigante, num cinema também gigante, o antigo Palácio, pertinho do Odeon.

Há uma série de distorções a respeito de John Milius. Distorções que a recente edição da Foco faz o possível para dissolver. Milius, é falado no filme, preza acima de tudo a arte de contar uma história. Por isso seus filmes remetem à herança do cinema clássico, tanto de John Ford quanto de Alexander Ptushko, diretor que filmava sob as asas de Stalin (as primeiras imagens de Conan, o Bárbaro lembram as de Flor de Pedra). Curiosamente, o mais entrevistado entre os diretores companheiros da Nova Hollywood é Spielberg, que conta como Milius escreveu o monólogo do personagem de Robert Shaw em Tubarão. Alguém diz no filme, não me lembro quem, que Milius respirou aliviado quando soube que não seria George Lucas o diretor de Apocalypse Now, mas Francis Ford Coppola. A visão de Lucas de como deveria ser narrada a história divergia completamente da de Milius, por isso o alívio. Outras histórias fantásticas são contadas, sempre brigando com a edição "ágil a fórceps" da dupla de diretores.

Dia 5: decepções com Schrader e Bozon

Cada qual a seu modo. Não sei se dá para considerar The Canyons decepcionante, uma vez que os comentários já me levavam a crer que o filme seria desengonçado. Talvez seja decepcionante principalmente por começar numa toada de mistério, envolvendo os personagens numa rede de mentiras e desconfianças, e terminar como num folhetim de quinta categoria. Lindsey Lohan envelheceu uns vinte anos, e todos os personagens, sem exceção, são dignos de raiva ou desprezo. Há bons filmes cujos personagens são todos desprezíveis. Há até obras-primas assim. Não é esse o problema de The Canyons. Schrader dirige bem na maior parte, mas se perde em uma série de caminhos narrativos. Na verdade, meios caminhos narrativos. Porque ele não transgride, de fato, a não ser quem ainda acha que mostrar nu frontal masculino é transgredir.

Tip Top é outra história. Sèrge Bozon tenta aqui fazer uma comédia nonsense (a milhas das grandes screwball comedies do passado – e na verdade o tom está muito mais para Bertrand Blier do que para Hawks ou Cukor – apesar das intenções do diretor). Há momentos ótimos, sobretudo quando entra em cena o argelino (cujo nome não lembro) com seu cachorro (ambos ótimos e fotogênicos). O argelino começa a dançar um rock progressivo turco; é o momento Mods do filme (lembrando do melhor Bozon até aqui). O fã de Isabelle Huppert vai estranhar vê-la esperando, com a língua, o sangue que escorre por seu nariz. Mas é um papel corajoso a esta altura. Porque é inusitado, ainda mais quando sabemos que ela adora bater e apanhar até os hematomas durante o sexo. E Sandrine Kimberlain soa um tanto deslocada no elenco. Bozon acaba promovendo um encontro de diferenças, da frieza policial com a inquietude dos informantes, da aplicação investigativa com o fervor do sexo selvagem, de franceses com argelinos. 

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br