Brasília – Dia 1, parte II: Por que cinema? (Os Pobres Diabos)*
Brasília – Dia 1, parte II: Por que cinema? (Os Pobres Diabos)*
Por Heitor Augusto
Do ponto de vista da informação trazida pelo filme e seus significados, Os Pobres Diabos se insere numa discussão interessante e imprescindível no contemporâneo: por que arte? Alargando a pergunta: por que cinema?
Filme alegórico, nele fala-se do palpável – uma trupe de circo que aporta em Aracati, interior do Ceará, e tenta atrair a atenção da população local –, mas expande-se para outras leituras. Ao questionar as platéias vazias do circo dentro do próprio filme, talvez Os Pobres Diabos esteja perguntando pela plateia vazia para o filme brasileiro que não venha da fornalha da Globo Filmes.
Um cenário desolador, comum, mas superficialmente discutido no cinema brasileiro, pois culpam-se sempre os filmes, “artísticos demais”, e não a própria organização do mercado, voltada ao privilégio do capital. O caso mais recente é de Esse Amor que nos Consome, que, em São Paulo, estreou em apenas uma sala e num horário (17h) e “analistas” ainda tem a coragem de dizer que filmes como esse não tem potencial de público. Como discutir ausência de potencial – entendimento, aliás, por demais subjetivo – quando não existem condições mínimas para seu florescimento?
Ou seja, o diagnóstico que Os Pobres Diabos faz, especialmente nos planos finais, não diverge de quem tem uma visão acrítica. A questão não está na indagação que ele faz (“por que arte? Para quem?”), mas em como ela é transformada em cinema.
Percebe-se, no longa de Rosemberg Cariry, um desejo de dialogar com formas contemporâneas, mas pesa a sensação de que esse contemporâneo no filme está submetido, contido e hierarquizado num grau inferior ao barroco que Os Pobres Diabos também carrega. Não que o contemporâneo inexista na encenação. Essa sensibilidade está lá: a opção pelo formato scope, a geometria do quadro (divisões horizontais e verticais que estabelecem dois níveis distintos de ação no mesmo plano), planos fixos atento às bordas etc.
Desejo, porém, contido por outro, o de informar e afirmar pela metáfora. Tão preocupado pelo enunciado, o filme torna-se rígido, sem fluidez, andando em uma só direção, deixando pouca margem para outros caminhos, outras leituras.
Isso reduz muito da potência dos personagens do filme, como é o caso do líder da trupe, interpretado por Everaldo Pontes. Existe uma preocupação de ilustrar que o personagem, ao dizer que confia no povo, não fala necessariamente do povo da cidade de Aracati a ir ver o circo, mas de um próprio questionamento do intelectual de esquerda que acredita nas artes e em suas possibilidades de chegar a ele.
Essa encenação, que tenta mostrar-se atenta à força da sugestão, mas que acaba confiando demais no dito, acaba por minar o que há de força no filme. Uma pena, pois Os Pobres Diabos tem suas sofisticações. É interessante a presença de um dramalhão aparentemente mequetrefe – o palhaço pegador, a mulher desejada por quase toda a trupe, um negro que se chama Tarzan porque trança as pernas nas cordas que sustentam as lonas como o herói no cipó, o chefe apaixonado pelo Tarzan – inseridas numa obra de aspirações maiores. Há também a ideia do fingimento – a falsa mexicana que canta La Cucaracha – e da crença nesse fingimento (ninguém da plateia grita “ei, você é brasileira!”), mas que permanece pouco explorada na própria encenação, existindo apenas como dado, informação.
Mas a matéria, que permitiria ao filme crescer e se enriquecer com ambiguidades, é represada na encenação, fazendo com que Os Pobres Diabos caminhe unicamente em linha reta.
*Filme revisto, desta vez até o final, na manhã de sábado
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