Ano VII

Brasília – Dia 5 – Há um morcego na porta principal (Riocorrente)

terça-feira set 24, 2013

Brasília – Dia 5 – Há um morcego na porta principal (Riocorrente)

Por Heitor Augusto

 

This fire is out of control

I'm gonna burn this city, burn this city

 

This Fire, Franz Ferdinand

 

Trabalhar duas, três oitavas acima da zona de conforto é arriscado. Riocorrente é, até o momento, o filme que mais dá a cara a tapa. Pensemos, por hora, nesse “dar a cara a tapa” como um dado do longa-metragem, não na meritocracia da exposição.

Riocorrente assume que a realidade está morosa. Um registro vocal – voltando à ideia de notação musical e afinação – moderado poderia passar despercebido, diluir-se na paisagem sonora, pouco provocar ou chamar a atenção. É de caso para lá de pensado que o filme cante testando sua envergadura vocal, correndo o risco de desafinar, mas encarando uma eventual desafinada como algo menos importante do que a raiva que ele carrega e que quer botar para fora.

Canta mostrando uma preferência pelo o alargamento gradual da palheta, o zunir no ouvido de um som que é meio bonito, meio incômodo como Te amo, podes crer, cantada no longa por um Arnaldo Baptista de hoje – aliás, muito precisa a escolha de Arnaldo, cujo Loki é uma longa depressão colorida em forma de som, sempre uma oitava acima para uma voz com pouca extensão.

Temos quatro arquétipos dessa realidade morosa. O jornalista (Roberto Audio) é um homem das ideias, mas que não vê muita saída para elas. O ex-ladrão (Lee Taylor) que carrega muita raiva a ponto de explodir como uma panela de pressão. Ele protege Exu (Vinícius dos Anjos), um menino de rua invisível. O diálogo entre um universo e outro é feito por Renata (Simone Iliescu), a radical que se encaixa perfeitamente na definição de rebelde dada por Antônio Candido em Radicalismos, já que é o “desvio ocasional da mentalidade das classes dominantes”.

Entra novamente a questão da extensão vocal que o filme possui para cantar acima da zona de conforto. Por um lado resulta em passagens fortes e ricas. Lembremos da belíssima entrevista com um especialista que divaga sobre um estado de coisas, mas que não cabe numa pergunta de jornal; ou as cenas de sexo que reforçam não o orgasmo, mas a canalização de energias de alienação; ou o “aleatório” plano do corpo fincado nas grades; ou a maneira em que captura a essência de São Paulo, libertadora aqui, opressora ali.

Em muitos outros momentos Riocorrente passa do ponto – avaliação que é, obviamente, subjetiva e não significa uma verdade sobre o filme, mas sim uma interpretação dele. O mais sintomático está na sequência do jornal corroído pelos ratos. No plano anterior o jornalista goza, vira de lado e dorme copiosamente. Corta para uma montanha de jornais. Pronto, a sequência era essa, tudo ali já estava dito. Os ratos, porém, parecem vir desse desejo do realizador Paulo Sacramento em desobstruir o peito para conseguir respirar. Mas aí o filme desafina.

E desafina também em outros momentos. Mais do que desafinar, porém, quando passa do ponto o filme é levado para algo ainda mais incômodo, que é a ilustração repetida do que significam os personagens e seus gestos. Seria realmente necessário que o jornalista redigisse seu artigo numa máquina de escrever? Não seria essa uma ilustração bidimensional e inútil? E os cachorros que brigam?

Desenvolvimento irregular. De um lado o belíssimo plano da janela em que o casal discute e diagnosticam vagamente o problema; do outro, a sequência do “cara, me empresta seu carro”, guiada – novamente – pela vontade de dizer, mas muito pouco elaborada se comparada com outras.

“Por que deixar para amanhã?”, questiona, retoricamente, o ex-ladrão. Riocorrente aposta no agora, representando com intensidade, volume e vontade. Querer o agora é sua força e fraqueza. No terço final, parece correr mais rápido do que o necessário. A busca da ação no agora deixa de ser intensidade e se torna pressa no ritmo do filme. Não faria nenhum mal a ele mais elaboração, um desenvolvimento ainda mais complexo dos personagens (especialmente o de Lee Taylor, que segue praticamente todo o tempo em linha reta), um caminhar mais longo para inclusive aumentar a força quando o fogo sai de controle e se torna imperioso queimar a cidade.

Há de se respeitar esse espírito de urgência no qual o filme está mergulhado. O resultado de Riocorrente, todavia, é irregular. Sobra-lhe mais vontade e gana do que elaboração, um pensar mais demorado e pausado, sobre como chegar.

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