Ano VII

Brasília – Dia 2, parte 2: Negociar o personagem (O Mestre e o Divino, O Canto da Lona)

domingo set 22, 2013

 

Brasília – Dia 2, parte 2: Negociar o personagem (O Mestre e o Divino, O Canto da Lona)

Por Heitor Augusto

Não fosse a negociação, um documentário como O Mestre e o Divino sequer existiria. Por detrás de personagens fortes – um missionário que filma os Xavante há 50 anos e um carismático cineasta indígena – mora um pedaço para lá de controverso da história brasileira: o que está implicado no processo evangelizador da Igreja Católica dos povos indígenas.

Adalbert Heide é um missionário alemão, misto de aventureiro (fala a língua dos Xavante e se define como um índio branco) e cioso pela ordem (“vai botar a bermuda menino, é feio andar assim”). Divino Tserewahú tornou-se realizador por conta do projeto Vídeo nas Aldeias e já fez diversos filmes sobre os rituais de seu povo.

Contam histórias, relembram o passado. Ambos são engraçados. Mas um espectador escaldado, crítico, sabedor de que na catequização está implícita a dominação (ainda que haja alguma troca na relação ela se dá nos termos determinados por um dos lados) fica ressabiado com o que se diz no filme. “Houve conflito com os salesianos?”, pergunta Tiago Campos, o diretor. “Não lembro de nenhum”, responde Divino. Porém, minutos antes ele havia dado a entender que não gostaria de falar dos padres, do passado.

As imagens antigas e o riso convivem com uma sensação de que algo não está bem. O filme segue. Alguns cortes secos, temas que permanecem no escuro. Apesar da narração em off a dar uma orientação mínima, O Mestre e o Divino prefere que os personagens falem de si próprios para que, com isso, algo seja revelado. Um olhar atento reconhece as sutilezas.

A maior delas e que justamente é a que mais merece ter a atenção chamada é a projeção que Adalberto faz de si próprio em NOME DO FILME, raríssimo western alemão em que o branco aventureiro é salvo pelo índio Apache, seu amigo e fiel.

Essa representação do índio como amigo dócil lembra o próprio retrato que Hollywood fazia dos negros até o final da década de 1950, colocando-os como empregados fieis, pouco questionadores, felizes com sua condição, especialmente se o filme era ambientado no Sul (cabem aí tanto o estereótipo da astóica mucama quanto do house nigger puxa-saco).

Sabemos que a História não é assim e que o esforço em pregar harmonia nas relações conflituosas vem do vencedor, não do vencido. Ou seja, difícil comprar a narrativa heroica que Adalberto conta sobre si. O Mestre e o Divino deixa em sua estrutura algumas brechas para entendermos o processo de catequização.

Ainda assim, sente-se que muito fica de fora. Não apenas informações, mas também a própria intensidade da sugestão, da ambiguidade e da dúvida. Talvez Remissões do Rio Negro, bom documentário que infelizmente não circulou tanto quanto deveria após sua passagem pela Mostra de Tiradentes em 2011, vá mais a fundo e explicite as negociações para mexer num assunto espinhoso.

O Mestre e o Divino as sugere, mas nunca abre a porta por completo. Se abrisse, talvez sequer o filme existiria. Por outro lado, o riso, componente que aqui surge com força, funciona tanto para aproximar o espectador como também – mesmo que não tenha sido essa a intenção – amaciar o que há de explosivo nessas relações, no que está fora do quadro.

O documentário de Tiago Campos é ambíguo. Talvez ele pudesse ter sido ainda mais.

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