Ano VII

Brasília – Dia 3: Um realizador fantasma (Avanti Popolo)

domingo set 22, 2013

 

Brasília – Dia 3: Um realizador fantasma (Avanti Popolo)

Por Heitor Augusto

 

Com Avanti Popolo surgindo apenas no terceiro dia de competição, tem-se a esperança de que o nível da seleção do Festival de Brasília deste ano entre as ficções está alto. Pois o filme de Michael Wahrmann equilibra-se muito bem entre uma rígida preocupação formal (não há sequer um enquadramento que seja acidental, pouco pensado) e a alma do que preenche o quadro.

Que câmera é essa que filma esse pai parado no tempo e a tentativa de um filho que volta a casa para reavivar suas memórias? Assiste-se a um filme ou seria uma pintura cujos personagens passaram a se movimentar dentro dos limites moldura? Essa é a primeira coisa interessante: não haver muita certeza do tipo de filme que se está assistindo.

O estranhamento se estabelece logo de início. Um carro com o rádio ligado perambula à noite pela cidade. A ação sonora acontece fora de quadro. Quebra-se uma expectativa, porém. Esperamos, segundo as convenções, que esta se trate de uma câmera subjetiva e que, tal como no começo do curta Hic Habitat Felicitas (1996), de Karim Aïnouz, deixaremos de assumir a visão do personagem e o filme vai “começar”. Surpresa: não é o personagem que sai de trás do quadro e entra nele, mas sim o quadro que vagueia até achar seu personagem.

Fetiche formalista? O que se desenrola em Avanti Popolo confirma que não. Na sua volta a casa, André (André Gatti) reencontra perdidos filmes em Super-8 rodados por seu irmão entre o fim dos anos 1960 e início dos 70. O pai (Carlos Reichenbach) parece alheio ao presente e só se interessa por sua serelepe cachorra, a baleia. André diz que vai dormir lá em cima. O pai não permite. Por quê? “A porta está fechada”. Essa “porta fechada” vai pautar o restante do filme.

Existe o rigor dos enquadramentos sólidos e planos fixos, da tonalidade do filme, das incidências de luz, do som e do fora do quadro. O rigor também da montagem que estabelece o plano para só depois clarear sobre o que se trata e o que informa. Mas existe a alma: os filmes em Super-8, a memória, o afeto. Imagens que lembram uma felicidade pregressa, do passado, a viagem do irmão à Rússia e seu inexplicável sumiço na volta ao Brasil. Há também o humor de três sequências magistrais (o taxista viciado por hinos nacionais; o realizador líder do movimento Dogma 2002, um “movimento solitário”, que exibe um curta que transpira o espírito de Jairo Ferreira; o rap do Eminem russo). Fica claro que Avanti Popolo não é um filme de especulação audiovisual, mas algo mais, muito consciente de onde quer chegar.

Tendo na memória Oma (2011), o curta de Michael que põe em dúvida a natureza da câmera que filma a avó, sabe-se que cedo ou tarde revelar-se-á o status dessa câmera e o interesse por um registro de personagens próximo ao inclassificável. Aquela câmera subjetiva inicial se explica aqui. Na sequência final, em que se “projeta” um filme em Super-8, o único que não é identificado por André, a parede torna-se espelho e o mistério do “quem filma esse filme” cai por terra. Descobrimos que até então assistíamos a um filme feito com imagens rodadas por um fantasma, um espectro que, numa intercalação temporal do passado perdido com o presente congelado, torna-se material, de carne. Um espectro que sai das frestas das paredes rachadas e ganha um rosto a justificar a natureza do quadro, a se tornar personagem daquele mundo, mas também da História. Uma maneira muito potente de encenar a ausência/presença dos que desapareceram.

Nesse momento o filme cresce exponencialmente. Aí se entende porque Avanti Popolo chegou a Brasília cercado de tantas expectativas.

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