Ano VII

Brasília – Dia 1: Projeção, esse detalhe (Sylvia, Luna e Cinara, Outro Sertão)

quinta-feira set 19, 2013

Brasília – Dia 1: Projeção, esse detalhe (Sylvia, Luna e Cinara, Outro Sertão)

Por Heitor Augusto

Novo festival, velhos problemas. A transição da película para o digital de alta performance está sendo traumática para quem acompanha cinema no Brasil. Para quem não tem o conhecimento da minúcia técnica torna-se complicado contra-argumentar Sergio Fidalgo, coordenador do festival que justificou na coletiva de imprensa a interrupção contínua da projeção de Os Pobres Diabos no primeiro dia do Festival de Brasília.

Problemas com a projeção em DCP no Brasil são correntes. “São coisas que podem acontecer”, justifica Fidalgo, lembrando os problemas no Rio ano passado. Podem, mas não deveriam. Projeção não é um mero detalhe. Mas a repetição de erros, interrupções, qualidade de imagem insatisfatória por quase todos os festivais no Brasil e também no circuito comercial de exibição passa a ideia de que projeção é vista, sim, como um detalhe.

Leigo na tecnicidade, não entendo porquê da projeção em Curitiba durante o Olhar de Cinema não ter apresentado problemas. Ou a projeção do próprio Os Pobres Diabos no Cine Ceará, no mesmo formato. Se é um problema de transição, de não sabermos muito bem como lidar com o DCP, porque festivais que vão exibir no formato não conversam com os que já exibiram o com sucesso?

Enfim, se não é possível falar do longa de Rosemberg Cariry, houve outros filmes que, felizmente, não tiveram problemas de projeção.

 

Sylvia (2013), de Artur Ianckievicz

Os créditos de Sylvia começam com um funk setentista. Uma frase melódica remete à memória da trilha de Shaft, feita por Isaac Hayes, especialmente a The End Theme. Talvez essa leitura esteja por demais influenciada pelo meu olhar de pesquisador do Blaxploitation, mas iniciar o filme com essa música passa a informação de que Sylvia é um filme do passado.

Começa o filme. Sylvia é negra, outro detalhe a nos jogar aos anos 1970, ao Blaxploitation. Seria ela uma Pam Grier, uma Tamara Dobson de Londrina? O filme segue, sem diálogos e com muitas elipses. Conforme o curta-metragem se desenvolve, esse aparente filme dos anos 70 se revela bastante contemporâneo, dada a presença de procedimentos narrativos do hoje – em especial o zoom in no relógio, um travelling a construir uma certa atmosfera de dúvida e mistério.

Um hibridismo que desperta curiosidade, ainda que eu não esteja seguro se tal escolha contribui ao curta ou chama a atenção desnecessariamente ao elemento formal.

Outros também são os desafios que Ianckievicz se propôs com Sylvia: suprimir diálogos e confiar nos olhares das atrizes (Juliana do Espírito Santo e Daniele Dias); ambientar sua história no universo do boxe, espaço de imagens míticas tanto na ficção (Touro Indomável e muitos outros) quanto no documentário (Frederick Wiseman e Boxing Gym); atrair o espectador pela sugestão de fatos, não pela afirmação, e confiar na capacidade de tornar tempos fracos em fortes.

Mas falta algo no desenvolvimento desse curta. Talvez seja a sequência da luta filmada entre as meninas que fique aquém dos planos em que a câmera observa a rotina da academia; talvez o desfecho, que vai da catarse ao plano final clichê que deixa tudo em aberto; talvez seja a forma a chamar mais atenção do que deveria;

Ou talvez seja eu que não esteja lidando confortavelmente com o que há de novo nesse filme: nos dar uma heroína do Blaxploitation que, ao contrário de uma Foxy Brown, é vista pelo filtro do cinema contemporâneo – especialmente o asiático pós-anos 90 – e por isso mesmo “pede” um final aberto, ao contrário da vitória garantida aos heróis nos Blaxploitation mais pop – especialmente os filmes de ação.

 

Outro Sertão (2013), de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela

Há muita força na história desse documentário que fala da passagem de Guimarães Rosa como diplomata em Hamburgo entre 1938 e 1942, período em que o Nazismo recrudesceu, massificando a política higienista e genocida de exterminação dos “povos não-arianos”.

Filme de material de arquivo, imagens raras daquele momento e cartas. Muitas. Um deleite, obviamente, já que a prosa de Guimarães é gostosa de ouvir até mesmo quando não é organizada em literatura. As cartas são lidas por um ator e há também uma raríssima entrevista de Guimarães na televisão alemã.

Documentário de pesquisa ampla, de história forte pois pouco conhecida (refere-se a Guimarães como “o cônsul que ajudava os judeus” porque emitia vistos para o Brasil) e interessante do ponto de vista da fala (seja a do Guimarães ou a dos alemães pronunciando algo análogo ao “Xôáão Güimârráis Rôzá”).

Há senões. Primeiro à organização do filme, dividida em capítulos. Por um lado, aparentemente necessária, dado o imenso volume de material bruto; por outro, engessa o documentário e impede uma relação dialética com o material.

O segundo é a trilha de O Grivo. Melhor: à abundância d'O Grivo no cinema. Todos nós sabemos que o duo formado por Nelson Soares e Marcos Moreira é sensacional e assina trabalhos maravilhosos como os dirigidos por Cao Guimarães. Não existem, porém, outros músicos a trabalharem com trilhas que se utilizem dos ruídos, sons, dissonâncias? Me parece que escolher O Grivo tem se tornado uma solução cômoda aos realizadores de cinema que pensam num acompanhamento sonoro que fuja do convencional. Essa abundância do duo me faz lembrar quando Leonardo Medeiros estrelava três, quatro filmes por ano – seria ele o único ator bom quarentão do Brasil?

Já não vamos a um projeto para nos relacionarmos com a trilha sonora desse ou daquele filme, mas sim com “a trilha do Grivo”.

 

Luna e Cinara(2012), de Clara Linhart

Ainda no campo imagens que nos lembram de outras imagens, a empregada negra e a patroa branca e velha desse curta me remetem à relação de poder e chantagem emocional de Aurora e Santa em Tabu, de Miguel Gomes.

De modo que não compreendo muito a razão de existir desse curta de Clara Linhart. Mostrar que a relação entre patroa e empregada pode se diluir na cordialidade e implicar intimidade? Motivar uma curiosidade pitoresca numa empregada que discute cinema – “Ah, esse filme aí baseado no Grande Sertão: Veredas ia ser bom, boooom” – e não novela, como presumiria a visão do estereótipo da classe média? Avisar ao espectador que em qualquer documentário existe performance?

Acabado o filme não entendi o porquê desse filme, o que o destaca ao que já sabemos.

* Tive um retorno, em forma de conversa, de Clara Linhart e Fellipe Barbosa, diretora e montador, respectivamente, de Luna e Cinara a respeito do texto acima que escrevi sobre o filme deles.

Conversa interessante em que eles problematizam a minha recepção ao filme, mas especialmente uma afirmação no texto que, segundo a percepção de Clara e Fellipe, é ofensiva. Diz a passagem: “De modo que não compreendo muito a razão de existir desse curta”. Além de ofensiva, para eles existe ali uma equivocada relação causal entre essa afirmação e o parágrafo anterior, em que lembro da relação das personagens do filme a partir da memória que tenho de Tabu, dando a entender que, na leitura deles, o texto defende que um filme não deve ser feito já que outro sobre assunto análogo já existe.

Vejo procedência nessa ponderação que eles fazem. Mesmo não sendo essa a vontade implícita no desejo ao escrever o texto, existe uma brecha para essa leitura. É possível interpretar tal frase como apressada, preguiçosa e rasteira.

Na conversa, Fellipe e Clara ponderam também que o mérito de Luna e Cinara está justamente em como se problematiza a figura da diretora. Nesse ponto divergimos. Pensando sobre a afirmação deles e acessando a memória do filme, já que não pude revê-lo, não sinto que a problematização que o filme faz a respeito de sua própria realização, do papel da diretora em filmar aquela história íntima e complexa, seja tão forte quanto eles defendem e argumentam.

E por não achar que isso seja tão forte, penso que o filme, ao menos quando o vi da primeira vez, tem pouca força. Essa foi minha questão com ele: sua ausência de força o torna menos interessante que outros filmes que já vi. Isso não implica uma defesa de que ele não deva existir, apesar de, infelizmente, haver brecha para tal percepção no texto escrito.

Volto a uma nova leitura de Luna e Cinara numa revisão. Mas senti a necessidade de fazer esse registro.

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