Esse Amor que Nos Consome
Esse Amor que nos Consome (2012), de Allan Ribeiro
Podemos iniciar um olhar a Esse Amor que nos Consome colocando em perspectiva a própria afirmação no título: de qual amor estamos falando? Por que ele nos consome?
À primeira vista, os personagens tem um amor pela dança. Afinal, trata-se de uma companhia que se instala num casarão antigo do centro do Rio de Janeiro e inicia um dedicado processo de ensaios. Passam algumas cenas, diálogos se desenrolam e temos um indicativo para a segunda pergunta: esse amor nos consome porque somos nanicos no mundo dos homens. Consome porque enquanto se pensa em como posicionar o corpo no espaço, falar algo pela linguagem não-verbal da dança, o capital, o progresso bate à porta, atravessa a poesia e até faz até escárnio.
O casarão está ocupado provisoriamente para os ensaios da Companhia Rubens Barbot Teatro de Dança. Uma placa de “Vende-se” está agarrada na janela – e essa placa representa a contagem final apocalíptica, sentido enfatizado pela montagem de Ricardo Pretti, que a trata quase como um metrônomo a ditar o compasso do filme. Enquanto ensaiam, vez ou outra o corretor traz um possível comprador para conhecer o imóvel. “Aqui em cima daria uma área de fumantes”; “o que esse pessoal tá fazendo ali? É dança”; “vai precisar reformar, é um investimento grande”, filosofam os postulantes a compradores.
Essa é uma das possibilidades de pensar sobre o porquê desse amor consumir tanto: trata-se de um amor que, para ser vivido, implica andar numa linha muito fina entre a alegria e a incerteza. Como é o caso de um dos dançarinos, que se afasta da companhia porque precisa ter uma renda fixa e vai trabalhar em telemarketing. Um arco interrompido bruscamente: da possibilidade em dizer tudo com um corpo que se esparrama pelo chão ao ambiente asséptico do corpo contido e vigiado em baias espremidas a se expressar por uma linguagem verbal padronizada.
Um outro amor também em jogo é a cidade. Ao contrário de Filme de Amor (2003), de Júlio Bressane, em que três personagens abandonam suas vidas cinzas e exercitam a liberdade num espaço fechado, Esse Amor que nos Consome se volta para fora, para as ruas, praças, cantos, porto, água. “O homem é a cidade, a cidade é o homem” – ou algo assim –, diz Gatto Larsen. Com a dança, o filme se volta ao Rio de Janeiro e diz “eu te amo”. Esse Amor que nos Consome é também uma carta de amor.
São essas passagens que fazem desse filme uma experiência a encantar os olhos. Em especial, o número do cais do porto, em que Ele e Ela se encontram, se enamoram, se misturam e vão esparramar amor pelo restante da cidade; o outro é a dança dos corpos masculinos que flertam nas noites, quando Ele e Ele se fundem, mas temerosos do olhar à espreita.
Mas esse amor pela cidade também nos consome porque somos nanicos. Porque enquanto declaramos amor ela nos devolve na fuça as Trump Towers. Difícil amar alguém que te espezinha categoricamente. Você diz “eu te amo”. A cidade responde: “Foda-se. Caguei pra ti”.
Num terreno de incertezas representado pela presença abundante da placa “Vende-se” a nos lembrar que o que vemos ali no casarão poderá acabar, surge uma única certeza: a proteção dos orixás. Já no primeiro plano os búzios dizem que a casa ficará nas mãos de Barbot, Gatto e a companhia. Quando o corretor traz possíveis compradores, um Exu se faz presente nos cantos.
Por um lado, a fé, diz Hannah Arendt, não no sentido religioso, mas no político, faz parte do Homem porque representa a crença de fazer, dentro da História, realizações consideradas impossíveis. Por outro, entregar tudo para os orixás faz com que Esse Amor que nos Consome se aproxime de um dos pilares do melodrama canônico: a resolução pela providência divina. Tomar tal caminho não amaciaria as provocações do filme?
Lá pelo final, os dançarinos esparramam uma gigante colcha de retalhos e cobrem a placa de “Vende-se”. Quando essa colcha se debruça na varanda, Exu aparece e protege o casarão. “Venceremos” é o que diz esse plano belíssimo. Venceremos? De certa maneira, sim. Encontram-se espaços, buracos, possibilidades de fazer arte dentro da precariedade. Por outro, não. Um único horário (17h10) numa única sala na maior cidade do Brasil e um público de dez pessoas para um filme tão bonito como Esse Amor que nos Consome põe um ponto de interrogação nessa garantia de vitória.
Talvez o vencer seja, na verdade, um resistir, um continuar fazendo com a mesma sofreguidão do atirador de bombas imaginárias nas barulhentas e enormes construções de Não Estamos Sonhando.
Heitor Augusto
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