O início no Antiteater
O início no Antiteater
Por Fernando Watanabe
Na segunda metade da década de 60, Rainer Werner Fassbinder ganhou do seu amante 30 mil marcos, oriundos de uma herança familiar. Ele decidiu utilizar o dinheiro para realizar 2 curtas metragens, O Vagabundo da Cidade e O Pequeno Caos. O primeiro conta a história de um homem que ganha uma arma para se suicidar. No entanto, diversos contratempos o impedem de consumar o ato e, ao final, a arma lhe é tomada, o que termina por condená-lo a viver neste mundo.
Depois de ter sido reprovado em diversas ocasiões na prova de admissão da escola de cinema de Munique, ele se juntou ao coletivo teatral Actiontheater, que posteriormente veio a se chamar Antiteater. Como tudo em Fassbinder, seu processo de entrada no grupo não se deu sem alguma dose de turbulência. Extremamente determinado e cara de pau, após assistir a uma das peças do grupo seguiu a trupe que, para comemorar mais uma apresentação, foi beber em um bar próximo ao teatro. Alguns membros do coletivo viam com maus olhos o tal intruso: um estranho que estava lá sem ter sido convidado. Com apetite voraz, Fassbinder não só forçou a sua entrada no grupo como também em pouco tempo assumiu a liderança dele. Em menos de um ano de convivência tomou a dianteira em tudo o que dizia respeito à programação de trabalho do grupo e também passou a viver com os outros membros em uma espécie de casa/pousada. O Antitheater era seu trabalho e sua vida. Ele próprio à época já admitia que um dos motivos que o levou a ser um verdadeiro workaholic do cinema foi a sua condição nata de extrema solidão. Viver com uma trupe de artistas era então uma forma de amenizá-la, e as produções teatrais e cinematográficas realizadas em sequência eram uma forma de manter os companheiros por perto, uma vez que fazer um filme ou peça era atraente para todos naquele momento (garantia de trabalho e algum dinheiro mínimo). Isso sem falar no afeto que o ligava às pessoas do grupo. Pelo menos neste início, seu objetivo maior era estar cercado de gente e trabalhar por prazer; nada de fazer os melhores filmes do mundo.
Esse ritmo febril de produção só pôde ser implantado devido ao modo de produção extremamente econômico com que foram feitos seus primeiros filmes. Filmagens à jato, longa-metragens chegando a ser filmados em 9 dias e montados em 4 semanas para passar em festivais logo em seguida. Quando uma produção estreava, outra já estava em filmagem. Quando ele estava filmando algo, de noite já escrevia o roteiro do próximo filme.
Mesmo com toda essa disciplina espartana (que contrastava radicalmente com o desregramento de seu estilo de vida),Fassbinder, no início, realizou filmes cujos resultados não deixam de mostrar, sem nenhum tipo de pudor, as condições em que foram feitos. Na verdade, é mais correto dizer que os filmes de Fassbinder sempre tiveram essa preocupação: não esconder, e até fazer questão de expor, o trabalho por trás do filme. Nada a ver com making offs ou metalinguagem mas, sim, colocar o esforço por trás dos filmes na frente da câmera, sem muitas mediações. De certa forma, ele desejava o aspecto material precário das suas primeiras produções como uma forma de fazer um cinema mais visceral, um conceito muito próximo da Nouvelle Vague francesa. Isso está completamente de acordo com seu gosto pela encenação bretchiana que resulta em uma estética do “artifício bruto”. Somente por este príncipio (o da exposição do trabalho do filme), Fassbinder já se desvincula totalmente do grosso da arte burguesa – com quem no futuro próximo ele viria se relacionar de forma bastante subversiva. Cenários reais sem grandes intervenções pela equipe de cenografia, que geralmente eram espaços onde os membros do grupo viviam o dia-a-dia (a grande casa onde morava a maioria deles, apartamentos de amigos, bares, etc…). Peter Handke certa vez deu uma declaração sobre O Amor é Mais Frio que a Morte, o primeiro longa de Fassbinder: “ (…) a cama está desarrumada porque alguém dormiu lá no dia da filmagem e não a arrumou (…)”. Uso quase total de luz natural. Longos planos sem decupagem interna. Som direto e com uma mixagem sem perfeccionismo técnico.
Ele ganhou alguns prêmios em dinheiro com O Amor é Mais Frio que a Morte, o que possibilitou que ele se dedicasse em tempo integral às suas próximas produções. O mais impressionante é que, a cada novo projeto, além de evoluir criativamente, materialmente suas produções foram ganhando mais corpo. Mais planos, mais trabalho com refletores de luz, mais ruídos e sons diversos… Como nesse biênio 69/70 ele fazia praticamente um filme a cada 3 meses, em 2 anos ele já era um cineasta maduro e altamente capaz de realizar grandes produções em cinema, teatro e televisão.
Os técnicos que trabalharam com Fassbinder relatavam que ele não costumava fazer anotações sobre qualquer coisa. Ele possuía uma memória muito boa, e acreditava que tomar notas o faria perder tempo, além de colocar suas proposições em risco de serem debatidas, algo com o qual ele não lidava nada bem. Sua liderança se baseava em dominação e imposição. Também não costumava ter o tradicional período de ensaios antes das filmagens serem iniciadas: muitas vezes passava a cena para os atores no dia da filmagem e ensaiava cada cena uma única vez antes de disparar o gatilho da câmera. Naturalmente, dificilmente repetia algum take, pois além da questão da rapidez do trabalho e da economia de película, ele acreditava que a repetição era um desperdício de energia humana sem que quaisquer avanços reais possam ser conseguidos. Ele pensava que era uma idéia equivocada dos cineastas acreditar que a repetição leva necessariamente ao aperfeiçoamento, pois, ao contrário do teatro (uma arte da repetição), no cinema o encenador só precisa criar um efeito uma única vez. Nessa concepção um “take” se resume a criar um espaço tempo com determinados objetivos (plásticos, emocionais, rítmicos), e se o realizador está preparado, ele então será capaz de fazer acontecer coisas mágicas no espaço criado pelo recorte do enquadramento e pelo tempo que existe entre o disparo da câmera e o ”corta”. Ainda, um efeito que nunca se esgota em si mesmo, pois sua eficácia final vai sempre depender da montagem posterior entre os diversos planos. Fazer teatro era para ele mais penoso do que fazer filmes, devido ao fato de que a exigência e as armadilhas da técnica pesada que envolve o cinema não o assustavam. Ele temia, mais do que tudo, o desperdício de energia humana
Paradoxalmente, encontramos muito pouco improviso nas atuações da maioria desses primeiros filmes. Pelo menos não o improviso como tradicionalmente ele é entendido. Isso acontece porque as atuações Bretchianas deles se baseavam em posturas, na variação entre movimento e imobilidade. Apesar de muito falados, esses filmes são muito pouco verbais, são extremamente visuais, trabalhando a relação entre os corpos, a câmera e o cenário de forma muito concreta. Uma direção de atores baseada em movimentos físicos exteriores, ou seja, tentando evitar a psicologia interior dos atores. Não surpreende que em todos os filmes haja algum tipo de violência física estilizada, sem grandes coreografias de luta e também sem aquela violência “naturalista” onde vale tudo e as pessoas brigam como abelhas num vespeiro. As brigas em Fassbinder são pessoas rolando agarradas no chão de forma patética ou sendo cruelmente espancadas quando já caídas. Enfim, a não exigência de qualquer espécie de mimetismo psicológico dá aos atores a liberdade (relativa) de se preocuparem mais em executar os movimentos e decorar as suas falas (e modular o tom delas) .
Os figurinos exagerados geralmente são aquilo que caracterizam o personagem. Uma forma visual de se trabalhar com figuras opacas, cujo interior só nos é parcialmente revelado através de pequenos sinais físicos ou de grandes arroubos de violência. O termo figuras é na verdade mais correto do que o termo “personagens”, pois ao estilizar os seres que ele coloca em frente a sua câmera ele está tornando-os metáforas e veículos de forças maiores que eles.
Ao se assistir estes primeiros filmes feitos dentro do Antiteater, todo esse despojamento e pobreza de recursos técnicos passa a sensação de que estamos assistindo a alguma espécie de esqueleto de algum filme de gênero, em particular, o de filme de gângster norte-americano. Inevitavelmente isso remete ao primeiro Godard e suas releituras do cinema de gênero. Porém, em Fassbinder a sátira e o jogo lúdico não são motivos preponderantes. O que predomina é uma espécie de deformação selvagem das coisas. Deformar para criar uma outra forma. É nisso que reside boa parte da sua originalidade estilística, que começa em Brecht mas que não se esgota nele. Todos os aspectos aqui comentados, além de muitos outros, permaneceram e foram desenvolvidos ao longo de toda a sua obra. Em 1971 Fassbinder já tinha completado um ciclo que proporcionou a ele vasta experiência. Foi nesse mesmo ano que, após freqüentar uma mostra completa dos filmes de Douglas Sirk, ele direcionou seu olhar rumo a um tipo de drama que naturalmente viria a ser distorcido pelas suas mãos (fazendo-o de um modo sempre mais positivo do que negativo): o melodrama.
- O Amor é Mais Frio que a Morte – custo: 95 mil Marcos – filmado em 24 dias – abril/69
- O Machão – 80 mil Marcos – 9 dias – agosto/69
- Deuses da Peste – filmado em 5 semanas – Out/Nov/69
- Por Que Deu a Louca no Senhor R? – 13 dias – Dezembro/69
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