Ano VII

Estranho Caso de Angélica

segunda-feira set 9, 2013

O Estranho Caso de Angélica (2010), de Manoel de Oliveira

O Estranho Caso de Angélica foi escrito por Manoel de Oliveira em 1952. Na última sexta-feira de agosto de 2013, três anos após sua estréia em Cannes, o filme entra em cartaz – numa única sala, em São Paulo; ou seja, após quase seis décadas de sua idealização.

Tais dados, que poderiam não significar muita coisa, ganham dimensão e coerência quando pensamos que o seu  tema é, sobretudo, o tempo – o que, em última análise, também quer dizer que tudo nele remete à morte. 

Isaac (Ricardo Trêpa, compondo um personagem diretamente saído de um quadro de Marc Chagall ou de um conto de Franz Kafka) é um melancólico fotógrafo judeu, chamado para fazer um último registro da bela e rica Angélica, que acabara de falecer. Na sala onde ele deve fazer tal trabalho, todos parecem indubitavelmente mortos, exceto, é claro, pela morta em si, lindamente iluminada e sorridente. Ao firmar o olho no visor de sua câmera analógica, Isaac a encontra viva e alegre, deixando-o irremediavelmente assombrado.  

Como já fizera diversas vezes anteriormente (na realidade, poderia- se dizer  que sua filmografia passa-se em um tempo e lugar particulares, nunca definitivos), Manoel de Oliveira cria aqui um anacronismo um tanto mais gritante do que aquele presente em outro grande filme seu, A Carta, que adaptava de maneira até bastante fiel um romance do século 17 para os tempos contemporâneos, pouco importando as convenções sociais e as cobranças de nossa época.

Em O Estranho Caso de Angélica, tal confusão temporal serve milimetricamente a este trabalho tão dado a simetrias: ao inserir Isaac – facilmente reconhecível como mais um dos alter-egos do diretor – neste universo ao qual ele claramente não pertence (ele é um intruso, um estranho nesta pequena comunidade cristã), o cineasta o isola mais e mais deste mundo que muda a cada instante, aproximando-o tragicamente da condição imperturbável de Angélica, ou seja, aquela dos mortos.

Para tanto, sua estrutura responde a uma ordem retórica: o dia contra a noite, a realidade em oposição ao sonho, o passado sobreposto pelo presente,  o judaísmo no cerne do catolicismo, a vida alterada pela sua representação: a arte; no caso, a fotografia.

É essa transparência de intenções que fazem as sequências de fantasia, filmadas em preto-e-branco, tão honestas e sublimes. É um elogio a um tempo mais artesanal (aqui, tratando-se do cinema) que não mais existe; é, também, a quimera de um jovem que sabe não ser capaz de segurar o dinamismo de um universo que, a cada dia, menos lhe representa: Isaac é um prisioneiro de seu tempo e tal situação é explicitada por Oliveira ao isolá-lo junto a um pintassilgo em uma gaiola durante a longa conversa no café da manhã (onde presente entre os mais velhos está uma garota parecida com Angélica, mas que Isaac parece incapaz de notá-la). É válido lembrar que o seu declínio surge infalível quando, mais tarde, ele descobre que o passarinho morreu.

Filmado em uma bucólica pequena cidade portuguesa, tendo início durante uma misteriosa noite chuvosa, apresentando aos poucos os seus encantadores anacronismos e personagens, que mais parecem sonâmbulos articulados do que seres humanos, O Estranho Caso de Angélica registra, com uma precisão algo rara, a derrocada triste de alguém que se recusa a adaptar-se às exigências à sua volta. É, portanto, um trabalho de grande inquietude e desordem (mas, não por isso, menos divertido ou lúdico), que utiliza-se de suas incontáveis molduras (através de portas, janelas, espelhos, binóculos) para aprisionar todos os envolvidos neste mais estranho dos casos de amor.  Um filme sobre – e de – resistência, portanto. Um filme de mestre, enfim.

Bruno Cursini

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