Cinco Câmeras Quebradas
Cinco Câmeras Quebradas (Five Broken Cameras/Khamas Kamīrāt Muḥaṭṭamah, 2011), de Emad Burnat e Guy Davidi
Seu alimento, a câmera
por Heitor Augusto
Desolação e orgulho são sentimentos que acompanham a recepção a Cinco Câmeras Quebradas, crônica audiovisual em primeira pessoa dos crimes cometidos pelo Estado de Israel desde 2005 contra os palestinos do povoado de Bil'in.
A relação filme-espectador é direta. Não há rodeios. O camponês Emad Burnat comprou uma câmera para registrar o nascimento e crescimento de seu quarto filho, Jibreel. Cineasta autodidata, filma a família, as oliveiras, a terra, os amigos. Filma também o avanço gradual do Exército israelense e dos colonos, além dos protestos pacíficos do povoado.
Imagens que emanam sua origem endógena àquela realidade registradas por um cineasta camponês que filma guiado por uma vontade bastante clara: “Filmo para me curar”, diz Emad. Essa clareza no desejo é justamente o que potencializa o registro direto.
Aí entra o componente do desamparo inerente à experiência de Cinco Câmeras Quebradas: ocupação ilegal da terra, aparato bélico estrondoso, metralhadora de gás lacrimogênio, violência policial, prisão de crianças à noite, incêndios criminosos, assassinato de adultos, assassinato de crianças, impedimento do direito de ir e vir. Como não sentir-se desolado com essa repetição crônica de eventos, de um Estado que se esforça em suprimir, em sonegar ao outro qualquer coisa que lhe defina como humano?
Mas a melancolia divide espaço com o orgulho. Pois o que as imagens de Cinco Câmeras Quebradas nos revelam é também a obstinação em resistir, tão vital aos palestinos de Bil'in quanto respirar. Mesmo que qualquer possibilidade de diálogo com um soldado esteja fadada ao fracasso, à frustração de falar sobre humanidade para alguém que é treinado para esquecê-la.
(Aqui cabe um parênteses: complementar à experiência do filme de Emad/Daividi é toda a obra do documentarista israelense Avi Mograbi, recuperada no É Tudo Verdade em 2009. Especialmente o filme Z32, que destrincha o pensamento padrão de um soldado israelense nas zonas ocupadas).
Uma das interrogações deixadas pelo documentário diz respeito à penetração da imagem, do registro documental no mundo contemporâneo. Emad filma com obstinação, porém os crimes se perpetuam, não arrefecem. O cinema pode impedir algo? Por um lado, não fosse a gana do camponês cineasta talvez não estivéssemos falando nesta revista da dramática situação da Palestina. Por outro, os eventos não param e até mesmo o filme sofreu tentativas de cooptação pelo Estado israelense quando da indicação ao Oscar.
Essa especulação do poder da imagem vale também para realidade brasileira. A violência policial tem sido escancarada desde a onda de protestos deflagrada pelo Movimento Pelo Passe Livre. Vídeos, fotos, relatos se multiplicam da truculência policial, de um Estado que criminaliza o ato de protestar, que brinca com o spray de pimenta como uma criança. Um Estado que some com o pedreiro Amarildo. E continua aniquilando outros Amarildos.
Emad filma com a primeira câmea que comprou. Ela é destruída pelo Exército em uma manifestação. Filma com a segunda. Novamente destruída. Com a terceira – metralhada. Quarta, quinta… cada câmera que nasce e que se quebra representa o ciclo gahar/perder, energizar-se/esgotar-se. Filmar é alimentar-se. Quebrar-lhe a câmera é roubar-lhe o alimento.
© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br