Círculo de Fogo
Círculo de Fogo (Pacific Rim, 2013), de Guillermo Del Toro
Para o católico Guillermo Del Toro, as profundezas nem sempre representam o pecado e a maldade. Em alguns de seus filmes, algo de bom pode sair do mundo inferior, como um herói de origem infernal e puro de coração (o demônio Hellboy, protagonista de duas aventuras) ou um reino encantado (em O Labirinto do Fauno, de 2006 e Hellboy 2 – O Exército Dourado de 2009). O perigo, claro, também surge do abismo, sejam os insetos mutantes que habitam o metrô de Nova Iorque (no subestimado Mutação, de 1997) ou os monstros gigantes que ameaçam exterminar toda a raça humana em Círculo de Fogo – não confundir com o decepcionante filme sobre o cerco de Stalingrado que o francês Jean-Jacques Annaud dirigiu em 2001. Em comum, ambas as produções possuem apenas a presença marcante de Ron Pearlman, ator fetiche de Del Toro, em papéis coadjuvantes.
Os dois últimos projetos em que Del Toro se envolveu acabaram não se concretizando. O sonho pessoal de uma adaptação de Nas Montanhas da Loucura, de Lovecraft, não encontrou financiamento, enquanto que a versão de O Hobbit, de Tolkien, trazia um cronograma por demais alongado para o gosto do cineasta mexicano. Após essas duas grandes decepções, o diretor voltou sua atenção para um roteiro de Travis Beacham que o havia interessado em 2007. Os escritos que mais tarde viriam resultar em Círculo de Fogo, recriavam o cenário dos filmes de kaiju, palavra japonesa que designa monstros estranhos. No cinema, o gênero kaiju eiga virou sinônimo de criaturas gigantes, sendo Godzilla / Gojira o seu ícone maior. Outro ramo da cultura pop japonesa evocada é o estilo mecha (traduzindo: robôs gigantes), estilo popularizado em seriados (como o saudoso Robô Gigante) e animes (o cultuado Evangelion).
Pela primeira vez desde que começou a trabalhar em Hollywood, Guillermo Del Toro teve a sua total disposição um orçamento oferecido apenas para poucos: a ignorante fábula de 190 milhões de dólares, a maior parte deles destinados a dar vida aos terríveis kaiju e aos jaegers (palavra em alemão que significa caçadores), os robôs gigantes controlados por dois pilotos e que precisam defender o planeta da constante invasão dos monstros. Uma fenda no fundo do Oceano Pacífico é a porta de entrada para os kaiju, que chegam ao nosso mundo cada vez mais fortes e em menor espaço de tempo. Os governos da Terra, trabalhando em conjunto, acreditam que os jaegers se tornaram obsoletos e agora concentram suas forças na construção de grandes muralhas de contenção ao redor das cidades banhadas pelo Pacífico. As forças especiais que comandam os robôs escolhem organizar um ataque direto à fenda abissal.
Essa temática que remete ao imaginário infantil e adolescente poderia sugerir que Del Toro está longe do terreno mais autoral das obras produzidas fora dos EUA e faladas em sua língua nativa: Cronos (1993), A Espinha do Diabo (2000) e O Labirinto do Fauno. Pelo contrário, a mesma preocupação com vários dos temas anteriores reaparecem aqui, formatados para uma nova situação. Mesmo em filmes menos celebrados como Mutação ou Blade 2 (2002), era possível enxergar o reaparecimento dos gostos e obsessões do cineasta. Relegados ao segundo plano na filmografia de Del Toro, essas duas obras trabalham assuntos com menos concessão do que visto nas fracas adaptações de Hellboy, consideradas o auge do diretor nos EUA.
A oportunidade que Del Toro teve em trabalhar com o orçamento mais vultoso de sua carreia em Círculo de Fogo não foi capaz de fazê-lo perder o foco. Diferente dos dois filmes em que adaptou o personagem Hellboy de Mike Mignola, onde o cineasta se mostrava deslumbrado com o seu próprio trabalho ou com fato de trabalhar com um personagem que lhe era muito querido. Neste épico colossal de robôs versus monstros, nada parece forçado para convencer o espectador, e Del Toro consegue reproduzir de maneira genuína para plateias acostumadas ou não, a mesma sensação de estar assistindo a um filme ou seriado infanto-juvenil japonês. O acabamento visual do filme não encontra paralelos em nenhum kaiju eiga ou qualquer outra modalidade de tokusatsu (cinema com efeitos especiais) praticada no Japão. Comparado com os brinquedos irrequietos de Michael Bay, o filme de Del Toro esbanja emoção e simpatia.
Os monstros criados por Del Toro e sua equipe revelam a criança que existe no cineasta, pois vários deles são citações explícitas de outras criaturas colossais eternizadas no cinema. O monstro crustáceo que ataca o Japão em Círculo de Fogo, ao mesmo tempo em que lembra outro monstro do filme O Desafio dos Monstros (1970) assinado pelo grande Ishiro Honda (um dos pais de Godzilla), também é uma homenagem a uma clássica obra do horror nipônico. Ainda que seu nome não seja mencionado no longa, o caranguejo gigante foi batizado pela produção como Onibaba – título da obra-prima que Kaneto Shindo fez em 1964. Dar nomes próprios aos monstros é uma atitude bem ao gosto dos japoneses e Del Toro não foge à regra.
Os personagens humanos de Círculo de Fogo funcionam como arquétipos que o público-alvo do filme se acostumou a ver em produções japonesas (animes principalmente). Da mesma forma que Del Toro consegue encaixar seus temas sem grandes problemas ao longo do filme. Difícil imaginar outro cineasta e escritor, além de Guillermo Del Toro, capaz de apresentar um personagem chamado Stacker Pentecost (interpretado por Idris Elba). Se a guerra civil batia à porta em A Espinha do Diabo e O Labirinto do Fauno, o cenário agora é de uma guerra global, capaz de fazer nações como EUA, Rússia e China esqueceram as desavenças – como visto em Blade 2, antigos adversários precisam trabalhar juntos por um bem maior. Ainda que o jaeger russo e o chinês apareçam pouco, não existe a vontade de mostrar a superioridade de uma nação em relação às outras. Os ianques se destacam, mas eles têm a ajuda de todos os outros.
A figura humana mais carismática de todo longa, capaz de fazer frente aos impressionantes monstros, é Mako Mori (a japonesa Rinko Kikuchi). Com um passado trágico ligado ao marechal casca-grossa Pentecost, a versão-criança de Mori – feita pela jovem atriz Mano Achida – responde pela sequência mais aterrorizante e visceral de Círculo de Fogo. Tem lugar certo na galeria dos grandes momentos da filmografia de Guillermo Del Toro, em total acordo com os ótimos A Espinha do Diabo e O Labirinto do Fauno, que também trabalharam com os piores temores imaginados pelas crianças. Um momento de puro terror em meio a tantos de furor juvenil, que poucos cineastas são capazes de fazer quando compartilham da máquina de Hollywood. Círculo de Fogo não é um filme de encomenda, mas sim uma peça de destaque dentro do universo do autor mexicano. E com robôs gigantes de brinde.
Leandro Cesar Caraça
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