Antes da Meia-Noite
Antes da Meia-Noite (Before Midnight, 2013), de Richard Linklater
Na cena de abertura de Antes do Amanhecer, vemos um casal maduro discutindo em um trem. Eles incomodam a jovem Céline (Julie Delpy), que troca de banco para sentar-se perto de Jesse (Ethan Hawke). Em sua primeira conversa (a primeira de incontáveis), eles falam sobre como é envelhecer com outra pessoa. Dezenove anos depois, em Antes da Meia-Noite, eles passam a saber exatamente como é isso.
Rever Antes do Amanhecer (o ponto de partida desta, até o momento, trilogia), é nostálgico por diversas razões, a primeira sendo a nossa própria lembrança de quando o vimos pela vez. O fato de Richard Linklater ter, nove anos depois, retornado a esta história – no memorável Antes do Pôr do Sol – fez com que tenhamos ganhado ainda mais intimidade com estes dois personagens e, agora, ele acaba por compor algo distinto, formando uma experiência que nos remete ao Antoine Doinel de François Truffaut ou, ainda, à série britânica para televisão de Michael Apted, Up.
Ao nosso próprio saudosismo, acrescentam-se a beleza por vezes triste de vermos estes atores envelhecerem, esses personagens perdendo o brilho da juventude e, sobretudo, o trabalho do próprio cineasta, refinando os seus métodos e redirecionando suas ambições.
Se, no filme de 1995 (os fatos narrados, no entanto, se passam um ano antes), o charme gerado pela ausência de redes sociais e aparelhos celulares só nos surge quando olhados pelo retrovisor – e faz lembrar que, fosse hoje, todo o impasse de sua conclusão seria bastante inverossímil – é inegável que o que ali estava em jogo era a projeção romântica de dois jovens idealistas que lidavam com as ansiedades que um futuro, por definição, aberto e ilimitado, pode trazer.
No reencontro do casal, em Antes do Pôr do Sol, a questão girava em torno do ressentimento de um presente não pleno e de um porvir restrito que, no caso do casal dos filmes de Linklater, significava ter de lidar com uma vida que poderia tão facilmente ter sido outra. Era menos sobre um homem e uma mulher apaixonados, e mais sobre o tempo e o exato momento na vida em que estes personagens, de fato, viviam e haviam vivido.
Antes da Meia-Noite aprofunda-se nisso, registrando, essencialmente, o peso do tempo (a ação não se passa na Grécia por acaso) e a finitude do ser humano e de todas as suas relações, seja isso explicitado na figura da avó que morre após 74 anos de casamento, ou na lembrança de um amigo que só consegue ver a beleza da vida cotidiana quando descobre estar com os seus dias contados.
Para tal ilustração, o momento no qual Céline e Jesse estão sentados, contemplando o pôr do sol, e ela segue, melancólica, narrando a sua queda irrefreável (“Ainda lá”…, “Ainda lá”…, “Sumiu!”), é vital, principalmente quando inserido imediatamente antes do início da longa e brilhante (e sardônica) sequência da briga do casal, em um genérico e gélido quarto de hotel, onde toda a sua história parece prestes a sumir (não some!).
No entanto, comparado aos dois filmes anteriores, desde o início este surge com os dois pés fincados no chão, no saguão banal de um aeroporto qualquer, portanto a quilômetros de distância de um romântico trem rumo a Viena ou de uma sucessão de imagens da cidade de Paris. Contra o Jardim de Éden da casa do escritor na qual Jesse, Céline e suas duas pequenas filhas gêmeas estão hospedados – com idosos e crianças, jovens amantes, animais e comidas saudáveis –, a onipresença de discussões sobre o mundo virtual, fotografias tiradas com o telefone celular, o Facebook, o Skype. De fato, a já referida discussão no quarto de hotel (para onde todo o filme se encaminha), tem início quando as carícias do casal são interrompidas pelo toque do iPhone de Céline (e é através da foto escolhida por ele como proteção de tela para o seu próprio aparelho que vemos a ausência de sua esposa em suas prioridades).
É como se Linklater, ao buscar a poesia nos mais banais dos gestos cotidianos – como um homem que retira dinheiro do caixa-eletrônico –, estivesse, pela primeira vez, com dificuldade em encontrar ali algo que não um gesto instrumental e vulgar. Mas também o cineasta não se sente mais tão à vontade para voltar a sua câmera, ingenuamente, para roubar encanto da imagem de um cachorro que dorme, preguiçosamente, sob o sol em alguma calçada (para lembrarmos de uma fala de Jesse, quase duas décadas atrás).
Diante a este delicado paradoxo, Linktater, Hawke e Delpy conseguem extrair da candura e da modéstia de suas situações particulares uma comoção natural de rara graça. É a desafetação de uma linguagem (e de imagens) cujos artifícios servem apenas às sutilezas das situações ali traçadas. É a maturação límpida, improvável de tão difícil, de um trabalho que segue calma e discretamente o seu rumo, emergindo beleza de onde, aparentemente, não há. Tarefa, portanto, das mais árduas. Durante a projeção de Antes da Meia-Noite, parece simples, simples…
Bruno Cursini
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