8ª CineOP – Texto 3
1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 = …
Do recorte temporal 1964-69 à sintonia fina dos destaques de dentro. Os seis filmes selecionados são menos representativos de todo um cinema brasileiro realizado naqueles anos e bem mais fortes como expressões de um espírito do seu tempo que ultrapassa os próprios filmes e é mais contingencial que específico. O impacto que há num El Justicero, sozinho, ou num Trilogia do Terror, é o próprio mundo, mas a miscigenação criada pela visão seqüencial dilui o particular de cada obra para dizer mais sobre uma condição política com a qual esses longas lidaram.
Os algarismos e a soma
1 – Anuska, Manequim e Mulher (1968), de Francisco Ramalho Jr.
Basta o desfecho. Bernardo (Francisco Cuoco) e Anuska (Marília Branco) lidando com o fim do relacionamento. Ele, um fraco, covarde e perdido. Ela, não menos perdida, porém mais pragmática e aberta. Ainda sobre ele, um ex-jornalista que amarelou após saber mais sobre a barra pesada do mundo. Já Anuska, ignorante e alienada, ainda sonha e acredita em seu projeto incerto de chegar a algum lugar. São dois seres em momentos da vida distintos, e por isso fica difícil saber se a mulher, lá na frente, também vai se enfronhar na segurança. Não é uma questão moral que distingue esses dois seres. E nem é pela diferença que o drama do casal se estabelece: pelo contrário, é justamente pela semelhança, pois, como escrito acima, ambos estão perdidos. Antes que haja alguma comparação ao final de A Noite, de Michelangelo Antonioni, não há no filme brasileiro o mesmo fim da estrada matrimonial que o casal Marcello Mastroianni-Jeanne Moreau constatam ao longo de um dia e uma noite de festa, culminando no ato final que confirma o apagamento do amor. Não é existencial, e sim político o drama de Bernardo-Anuska. Mesmo ela, alheia da realidade (ela só sonha e pulula pelo conto de fadas feito de sabão pelo dinheiro), não está fora dessa realidade com a qual Bernardo se assustou. O filme é anterior ao fatídico dezembro de 1968 do AI-5, mas a atmosfera já estava dada. Nada pior, no caso, que uma ausência de projeto… projeto político, projeto de vida, projeto estético. O final de Anuska, Manequim e Mulher é quase o do anti-clímax, anunciado desde sempre (não aparece tesão em Bernardo, mesmo tendo a incrível Anuska nos braços). Falta algo… o chão. E o filme soube muito bem encerrar suas imagens com tal ausência de amparo.
2 – Bebel, Garota Propaganda (1967), de Maurice Capovilla
O filme mais hard news (e things), típico de um jornalista, Capovilla, mas trazendo uma realidade que, lá atrás e ainda hoje, a imprensa nacional opta por amenizar, mesmo quando sensacionaliza. O longa segue a trajetória de Bebel (Rossana Ghessa), do glamour (falso) de ser a tal garota propaganda numa campanha de sabonete à prostituição num bingo do sexo. A beleza fenomenal de Rossana Ghessa, tão bela que chega a doer os olhos, serve para ressaltar a perversidade deste conto de fadas invertido, onde não se sai da Gata Borralheira ao palácio – o próprio filme a apresenta num castelo, logo no início, laureada pela mídia, para depois acompanhá-la em sua descida. Mesmo nesse início aparentemente promissor à personagem, está patente a vampirização que sugará a dignidade de Bebel. O filme de Capovilla firma-se em balizas bem antagônicas, que não somam dois pontos de vista, e sim uma perversidade também do filme ao não distinguir moralmente a vítima dos seus algozes. Bebel é ingênua e vítima, mas também ambiciosa e esnobe, inclusive negando sua origem e sua história. Capovilla nomeou publicidade o alvo do seu longa (lembremo-nos do texto “A publicidade venceu”, de Luiz Carlos Oliveira Jr., na Revista Contracampo, tudo a ver com ontem, assim como Bebel, Garota Propaganda tem a ver com hoje), mas esta é ferramenta conseqüente de uma mentalidade típica da degeneração capitalista: o consumismo. Consumo, essa é a palavra que define a lógica da engrenagem que devora Bebel, que por sua vez opta até o fim em se manter engatada nessa roda. Claro, ela aprenderá que na realidade capitalista não há chance para idealizações, e a publicidade é a única que mente com sua promessa de fábula possível. Ter dinheiro é viver. Ou, na real, ter dinheiro é vender a alma, trocar o corpo e o espírito pela sobrevivência. Incrível é que, nessa situação sem saída, quase como um filme de terror, a câmera segue firme em seu papel de revelar, de apresentar os fundilhos da sociedade de consumo do Brasil de 1967, mas entrando no perverso jogo de exploração ao qual Bebel está comprometida. O olhar é consumista, de voyeur, desde a primeira imagem, num jogo consentido por ambas as partes (Bebel, espectador e filme entre os dois). Há um repórter na trama, que vai forte em cima dos entrevistados, escancarando a exploração, mas ele apenas cumpre o seu ofício de repórter, sem salvá-la. Claro, Bebel, esse prato delicioso a todos, serve à imprensa que, sem a desgraça dela, não teria matéria. O filme de Capovilla, sem hipocrisias, segue por esse caminho, escolhendo o único lugar possível para se abordar tal situação: o da câmera-aspirador de imagens, ou, simplesmente, exploitation. É o tal comprometimento do cineasta, que tem de enfiar o pé na lama de seu momento histórico. Brilhante.
3 – Brasil Ano 2000 (1968), de Walter Lima Jr.
Basta o foguete que sobe descontrolado, o repórter fotográfico que mais explora que conduz uma mudança revolucionária, a imagem de Anecy Rocha seguindo estrada avante. O mais promissor dos finais apresentados na pauta histórica desta 8a CineOP – promissor, não otimista, pois assegurando uma mudança, mas numa terra arrasada pós-apocalíptica.
4 – El Justicero (1968), de Nelson Pereira dos Santos
É avistar cineastas que, hoje, reclamam das adversidades produtivas que, supostamente, arruinaram seus projetos para louvar ainda mais a força de Nelson Pereira dos Santos, que sempre utilizou os insumos naturais do solo cinematográfico brasileiro para realizar seu filmes mais fortes, de Rio 40 Graus a Vidas Secas, O Amuleto de Ogum e o recente (problemático e belo) Brasília 18%. Entre orçamentos minguados, embargos outros aqui e acolá, única equipe possível ou o específico circunstancial, os filmes de Nelson trazem fortes marcas dessas condições. El Justicero é uma comédia maluca bem amigada com a comédia carioca, com alguma relação bem distante, de primo de quinto grau, com o imaginário do cinema marginal. Não há o clima de fim de mundo, mas um contrabando formidável que faz da malandragem da classe média marota do Rio (chamaram El Justicero de o Rio Zona Sul de Nelson) uma provocação incisiva ao regime. Quase amoral e aberto a leituras levianas que o acusariam de apolítico, o longa sofreu embargos com o se fosse um filho bastardo de um pai cineasta que havia concebido a finesse máxima de Vidas Secas. Era NPS experimentando adaptar à tela o conto de João Bethencourt, um escritor mais “mundano” que o aclamado Graciliano Ramos. E lidar com materiais alienígenas à tradição já sedimentada pelo Cinema Novo, como juntar Vivaldi ao escracho, para falar de uma trama amorosa em chave anárquica (e também nada a ver com a pauta cinemanovista). Os fragmentos da bomba da repressão, contudo, pipocaram no filme, que, em sua liberalidade de pôr na mesa os novos papeis do homem e da mulher – o galanteador Jorge Dias das Neves, mais conhecido como Justicero (Arduíno Colassanti), e a livre Ana Maria (Adriana Pietro) – fez bastante barulho ao regime. Mas foi mesmo a liberdade de Nelson, contudo, que deu ânimos à censura, sobretudo ao idealismo dos puristas defensores da “alta arte”.
5 – Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha
Basta a imagem de Paulo Martins resistindo contra o fim, forçando seu corpo furado de balas à ereção, torto mas de pé, nas areias que serão seu último canto antes do fascismo tomar área. É nessa mesma realidade projetada pela areia de uma Eldorado politicamente desolada que Rogério Sganzerla avançaria com um cinema ainda mais radical, forte, livre e renovador (e mais a ver como reação ao fim de mundo do AI-5) em A Mulher de Todos (1969), os filmes de Belair, assim como Julio Bressane, Tonacci e o Glauber Rocha exilado de Claro (1975).
6 – Trilogia do Terror (1968), de Ozualdo Candeias, Luis Sergio Person e José Mojica Marins
Podia ser o resultado da soma dos algarismos acima. Ou o resultado de sua dialética. Terror, inclusive, é uma palavra forte e bem adequada para caracterizar o governo militar no Brasil de 1964 a 1984, sobretudo por sua cara mais mansa (mais do que a ditadura de Pinochet no Chile dos anos 70 e outros vizinhos latino-americanos) mascarar a brutalidade da repressão (pois repressão é sempre um “não” insuportável, torpe, grotesco a qualquer ideia de política). Não é caso se mais intensa ou não que a violência que Bebel, por exemplo, sofre no filme de Capovilla, mas sim constatar que a violência contida nos três episódios de Trilogia do Terror é a mais selvagem, primitiva, física, dura e explícita entre os filmes apresentados na 8a CineOP (todos os filmes, dos históricos aos contemporâneos). A do curta do Person, o segundo, “A Procissão dos Mortos”, parece mais amena – Person até trabalha com as matérias dos espaços (a pedreira, a terra, a água), mas, como em São Paulo S.A., sua aposta é pelas geometrias, pelo pano de fundo que esses espaços oferecem. Assim, não é bem a lama o índice retido na imagem, mas o que a floresta, a clareira medonha da pedreira onde surgirão os mortos-vivos, o bar onde se estabelece a melhor sequência do filme (um jogo tenso de olhares e vozes entre homens aterrorizados com a ameaça sobrenatural de uma revolução fantasma-guevarista). Parece mais cartelar, no enunciado, mas o filme de Person termina com uma imagem que sintetiza a encruzilhada na qual as artes estavam lidando naqueles anos: o still dum menino apontando, enfurecido, um fuzil à tela. “O Acordo”, de Candeias, traz uma animalidade antepassada, primitiva, que ainda hoje é considerada quase uma pornografia. Numa vila, homens agarram as mulheres como bois montam em vacas, Bem e Mal confundem-se e, no geral, Candeias traz para o seu cinema elementos da contracultura, numa encenação que traz o brilho visual da cultura pop à aspereza ancestral do povoado. “Pesadelo Macabro” é um dos trabalhos mais high-art de Mojica, numa precisão incrível para confirmar a conexão entre pesadelo e realidade, entre o que esse pesadelo revela cifrada, mas detalhadamente sobre essa realidade. Há um dentro e fora que estabelece um jogo que, ao final, chegará no homem desesperado do homem que temia ser enterrado vivo, ali com os olhos esbugalhados, uma imagem que é a própria expressão do terror à brasileira. Raros filmes em episódios tiveram seus trechos dialogando tão bem entre si. Raros filmes brasileiros se mostraram tão encaixados no cinema de gênero (o terror, aqui). Raros filmes nacionais posicionaram-se tão eficientemente (lê-se com imagens diretas, ritmo, composição de quadro, direção) na urgência política daqueles anos.
O resultado
A soma não traria uma luz. O eixo histórico, entre 1964-1969, contou com filmes mais concentrados, entre 1967 e 1968. A história do Brasil indicou que a ficha caiu a partir de 1967, quando a repressão perdeu suavidade, culminando com o AI-5 em dezembro de 1968. As recorrências, contudo, saltam aos olhos na revisão serializada. Todos esses filmes exibidos em Ouro Preto trazem um desbarrancamento do projeto político, mais por impossibilidade contingencial, seja por desorientação (Anuska, Manequim e Mulher), por salve-se quem puder (El Justicero) seja por falência do projeto (Terra em Transe, Brasil Ano 2000). Ou a exposição de uma situação quase inefável, que indica um único caminho possível a seguir, o de ter contato com a violência (os de Candeias e de Person) ou o de ser vitimado por essa engrenagem violência (o curta de Mojica, Bebel, Garota Propaganda). Em todos eles, um diálogo mais direto (e arriscado, pois bem perigoso) com o país, mas não pela abstração generalista ou relativista, e sim por referência direta a elementos bastante concretos: a matéria viva daquele Brasil de 1967-68, traduzida num modo de filmar, de contar, de ter uma imagem bem resolvida na tela ou arruinada. Não era, ali, o fetiche do “bem-feito”, ou o desejo decidido de ser “um cineasta”. Nenhuma grife, nenhuma laureada performática no ato de dirigir, filmar, batalhar pelo filme. Nenhum desejo institucional, nenhuma relação enciclopédica e protocolar com o cinema, como se os filmes fossem moedas a fazer uma fortuna. Nelson, Glauber, Walter, Maurice, Luis, José, Ozualdo, enfim, pelos filmes selecionados, ninguém ali estava para brincadeiras. O cinema era, além de expressão, um trabalho… e um trabalho bem interessante para reagir ao mesmo mundo do qual ele se realizava. Não para serem “reutilizados” agora, ou pensados como obras longevas (materialmente, nada é), mas sim que, depois de 45 anos, esses filmes servem à memória, que é a única condição de perceber em que pé está o cinema brasileiro contemporâneo (e o Brasil) na história. O certo é que a crise do projeto político de ontem, expressada por esses filmes e demonstrando ainda assim um forte olhar desses trabalhos, parece ter avançado (derrapado) para uma ausência de projeto e de olhar. Salvo as ricas exceções contemporâneas, claro. Mas alguém se lembra delas?
* * *
PS
Poucos filmes contemporâneos vistos na 8a CineOP. Mas fortes. Dois deles, os médias Filme para Poeta Cego, de Gustavo Vinagre, e Sobre o Abismo, de André Brasil, possuem uma força bastante combativa e digna inclusive à seleção dos filmes históricos de Ouro Preto. O primeiro aborda o escritor Glauco Mattoso, poeta que adotou um estar no mundo entre a irreverência e a provocação, expondo-se na mesma medida que ataca – inclusive pondo na arena o glaucoma que lhe tirou a visão já na idade adulta e a humilhação que sofreu quando menino. O jogo do filme é o mesmo, com seu diretor e o próprio Mattoso colocando-se, expostos, no centro de força das cenas, numa espécie de performance do real.
Sobre o Abismo opera numa tradição do cinema experimental de construção intelectual, explorando as texturas e um ritmo fluido de memória afetiva. Mas o caminho é o do cinéfilo, com o diretor vendo o cinema junto à vida, encontrando beleza nos filmes e não necessariamente no pensamento sobre esses filmes. O tal abismo está na tela em branco do cinema, que vem depois da projeção de um filme e que antecede o filme que virá a seguir. É uma declaração de amor ao cinema e à sua sobrevivência, ou seja, às suas imagens e os rastros que elas deixam na memória, na tela, na vida.
Dois médias que defendem uma resistência contra o esquecimento. A mesma causa à qual Cine Holliúdy luta, mas sem o mesmo afinamento. Ainda assim, a experiência na praça de Ouro Preto, onde foi exibido, revelou uma imantação entre público e filme que, de certa forma, não deixa de ser um eco ao que André Brasil sensivelmente trouxe com seu trabalho tão pessoal e sincero. Sincero, aliás, como Halder Gomes, diretor deste Cine Holliúdy.
Paulo Santos Lima
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