8ª CineOP – Texto 2
A imagem de ontem na voz de hoje
Inevitável que a censura estivesse na pauta da temática histórica desta 8a CineOP. O que engendra a produção cinematográfica brasileira entre 1964 e 1969 (recorte temporal da curadoria) é a repressão que, gradativamente, foi tomando corpo entre o 1o de abril que fundou o regime militar no calendário e o assombroso dezembro de 1968 que datou a entrada em vigor do AI-5. É dispensável detalhar o que significou essa pá de cal no fiapo de liberdade que ainda havia naqueles anos, mas é importante sacar onde encontrar evidências materiais desse momento desairoso. O dezembro do AI-5 não pode ser visto de forma estanque, pois o espírito da repressão já contaminava os ares – Terra em Transe, de 1967, já desenhava na tela a chuva de bombas sobre o país (mais especificamente sobre a história daquele instante e, sobretudo, sobre a história do Brasil, como se Glauber traçasse ali um descarrilamento inevitável, pois há longa data o trem político nacional seguia descontrolado). Sintomático que, na tarde do primeiro dia de festival, antes mesmo da cerimônia de abertura à noite, Terra em Transe estivesse em exibição no festival: a obra-prima de Glauber Rocha anunciava, em 1967, o inferno que meses depois seria também avistado (formidavelmente) por Sganzerla, Tonacci, Bressane e alguns poucos outros.
Os cineastas presentes em Ouro Preto foram alguns dos que respiraram essa atmosfera podre que pairava no Brasil 64-69: Maurice Capovilla, Walter Lima Jr., Nelson Pereira dos Santos e Francisco Ramalho Jr. Ainda que Capovilla tenha dado na mesa “Memória e Consciência”, na sexta, uma verdadeira aula de História através de seu percurso (que partiu da imprensa, como repórter do jornal Última Hora, onde fez uma série de matérias sobre as ligas camponesas, às vésperas do golpe), o tom não era o da precisão, e sim o da emoção – melhor dizendo, o da memória. E as lembranças, como se sabe, prescindem da experiência. Capovilla não foi o primeiro a falar, mas seu relato foi quase uma introdução para explicar um pouco por que a produção artística daqueles anos é substancialmente a mais forte da história do Brasil. Era no bar perto da redação do Última Hora onde Rudá de Andrade, Ferreira Gullar, Vladimir Herzog, integrantes do CPC etc. encontravam-se compartilhando a cerveja e o olhar sobre o mundo. Havia, portanto, um diálogo (logos) entre cineastas, músicos, artistas plásticos e do teatro, jornalistas etc.
Não só Maurice, os outros três cineastas também foram jornalistas. Jornalistas em tempos de jornalismo, ou seja, de ofício que, à parte os fins serem ou não nefastos, havia um repórter com boa escrita e “in loco”, ou seja, alguém em contato com o mundo. Esse olhar mais direto paras as coisas estendia-se aos filmes. Assim, se o próprio Francisco Ramalho Jr. explicaria ao público, mais tarde, ao apresentar seu Anuska, Manequim e Mulher (1968), que este não primava pela realização, a tela o desmentiu. Na história de Bernardo (Francisco Cuoco), que troca o jornalismo pela publicidade, ou a política pelo consumismo, está uma crítica incisiva àquele instante tão sombrio à luta política. O personagem, inclusive, delega ao amor por Anuska (e ao mundo, no geral) sua escolha. Um fraco, um cínico, que delega sua letargia à história, como se não estivesse nela, como se essa história fosse uma instância superior, inefável. O sonho acabaria para alguns ali, como ao seu colega de redação (preciosa aparição de Jairo Arco e Flexa, que futuramente se tornaria crítico de cinema), mas Bernardo nem sonha, pois se acomodou na hipocrisia. O filme de Ramalho Jr. consegue trazer à tela aquele espírito de desbarrancamento que o país sentiria nos anos seguintes. Seu diretor já sentia ali, em 1968, os mesmos açoites da repressão. É pela revisão dos filmes que o Festival de Ouro Preto tem revelado, lembrado ou comentado o material humano por trás do cinema brasileiro. Valioso, pois, se os filmes se apagam desse mundo chamado Brasil, cinema brasileiro e tal, quanto mais as vidas, o subsolo.
Importa também, sobre Anuska, colocá-lo em perspectiva. Sacá-lo como produto daqueles tempos, mas pensá-lo hoje. Não vê-lo com os olhos de hoje, como um filme feito em 2013, mas ver com os mesmos olhos de hoje o hoje de 2013. Pensar se, nestes dias, haveria um filme como este, que não passa as mãos na cabeça de seu protagonista. Algo que, nesses anos 2000/2010, parece impossível, porque a tendência é relativizar as questões e em compreender e legitimar as motivações e ações de seus personagens. É o olhar dos filmes para personagens de dias atrás, como a destemida Suely do filme de Karim Aïnouz, ou do recente Era Uma Vez Eu, Verônica. Claro, há um Ugo Giorgetti para firmar exceção, num olhar sensível e incisivo sobre o mundo (o país, a história das coisas, a distinção entre passado e presente). Esse distinguir entre as peças brancas e as pretas num tabuleiro, entre a árvore e o macaco que está nela, enfim, tudo isso está num punhado muito restrito de filmes contemporâneos, os de Giorgetti, os de Bressane, os de Coutinho, o Crime Delicado do Beto Brant, os trabalhos de Tiago Mata Machado, um Falsa Loura de Carlos Reichenbach.
O “preste atenção” não foi dado, então, apenas na mesa, pela voz dos diretores em Ouro Preto. E não completamente pelos filmes (ainda bem). É mais pela presença desses cineastas e seus longas quase como em caráter especial, situação extraordinária. A imagem na tela, sem dúvida, mas pelas brechas entre as falas, os debates, as escolhas entre os filmes contemporâneos e os históricos, ou a fusão de ambos – caso do documentário Ozualdo Candeias e o Cinema, de Eugênio Puppo. Uma fusão quase idealista, entre passado e presente, da possibilidade (o filme ser exibido na cerimônia de encerramento da 8a edição do CineOP) de se recuperar uma história do país, de nós mesmos, do cinema (a temática histórica). Junto a isso, os debates sobre a temática da preservação, aos quais não pude acompanhar, mas, como um gêiser, comentou sobre a engripada discussão sobre a preservação: vários combatendo pela salvação de nossa produção material (os filmes, os documentos e afins) contra um estado de coisas bastante adverso (uma burocracia, desinteresse, disputa política e ignorância que, ironicamente, nasceram da nossa própria história). O que se pode dizer é que a fala de Ismail Xavier, no seminário de encontro entre a ABPA e a Cinemateca Brasileira, coordenação de Hernani Heffner, foi dos gestos mais políticos desse Festival de Ouro Preto. Como atual presidente do Conselho da Cinemateca Brasileira, Ismail fez algo que poucos fizeram: ir ao didatismo, à explicação mais detida e bem narrada, para explicar um pouco melhor sobre o enigma que é o funcionamento desta instituição que sempre é a que mais diretamente sofre com os problemas de longa data deste país. É a que também melhor os evidencia.
Nada a ver, diretamente, com a questão Cinemateca Brasileira, mas muito a ver com esse passado servindo para se entender o presente: Nelson Pereira dos Santos disse que a “censura não é data”; algo completado por Walter Lima Jr., que mencionou que a censura continua hoje, até pior que antes, pois lá atrás era possível primeiramente realizá-los para, então, passar ou não aos olhos dos censores, e já “as comissões de hoje têm critérios sinistros”, as leis de financiamento fazem com que os projetos sejam vetados antes mesmo de saírem do papel, sofrendo alterações absurdas, desfigurando-os; “filmes com alma estraçalhada”. Seria o caso de Os Desafinados, pensei. Ou da ausência de sexo no cinema brasileiro contemporâneo, como citou Francisco Ramalho Jr. e, certamente, com a importância de recuperar uma lição tão manjada mas jamais aprendida, sobre se olhar para trás para sacar melhor o presente. O AI-5 estava lá atrás gritando sua permanência além reabertura? E lá atrás os nossos cineastas, músicos, artistas não pretendiam um arte de intervenção direta, reagindo (pessoalmente e com suas obras) mais frontalmente às coisas, como Ismail Xavier mencionou sobre as artes nos anos 1960 noutro seminário da temática histórica, “Por Dentro dos Filmes”. Ali, Hernani Heffner disse algo importante, voltando a novo contexto industrial que surgia no ABC paulista dos anos 1960, os novos tempos aos quais o protagonista de São Paulo S.A. se abate, e sobre como a reação entre o agrário e a urbanização reverberou para os filmes, para a produção cinematográfica paulista a partir daqueles anos. De algo em princípio factual, Heffner extraiu um caminho para se entender o cinema. E o contrário, pelo visto, parece bem possível. Esta é a rica lição deixada pela 8a CineOP.
Paulo Santos Lima
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