Vocês ainda não viram…
Vocês Ainda Não Viram Nada (Vous N'Avez Encore Rien Vu, 2012), de Alain Resnais
Medos Privados em Lugares Públicos, o antepenúltimo filme de Alain Resnais, ficou mais de um ano em cartaz no extinto Belas Artes de São Paulo. Ervas Daninhas, o penúltimo, estreou, mas não teve a mesma sorte. E Vocês Ainda Não Viram Nada, o último, com o qual Resnais atinge mais uma vez um dos pontos mais altos de sua carreira, terá sorte ainda pior pelo andar da carruagem.
O raro sucesso de Medos Privados em Lugares Públicos contou com a contingência de ter um distribuidor que era também exibidor. A estratégia foi apostar na força do filme, e esperar que essa força voltasse a atrair público depois de uma natural queda. O boca-a-boca se encarregou de propagar suas qualidades, permitindo também que as pessoas o revissem e repetissem a sensação de maravilhamento. Acrescente-se a isso a conveniência de ter caído no gosto da terceira idade e temos um relativo fenômeno de bilheteria dentro desse gueto de circuito para filmes europeus.
É possível fazer a mesma coisa com Vocês Ainda Não Viram Nada. Pelo menos aqui em São Paulo. O filme é distribuído pela Imovision, e está sendo exibido em uma sala, Reserva Cultural, que é do mesmo dono da distribuidora. O Reserva Cultural tem quatro salas, duas a menos que o Belas Artes. Ainda assim, as inúmeras virtudes deste novo filme de Alain Resnais pedem que o filme permaneça um bom tempo em cartaz, mesmo que seja em apenas um horário (que seria mudado a cada semana) durante alguns meses. Utopia? O caso anterior prova que não.
Por outro lado, a situação hoje parece diferente de quatro ou cinco anos atrás. Os filmes mais pessoais tendem a ficar ausentes de nosso circuito, a não ser que venham acompanhado de uma grife (Godard, Kiarostami, Bertolucci). Existe uma crise no mercado exibidor de filmes europeus? Mais ou menos. O que acontece é que obras desafiadoras, que exigem mais do público, não têm mais tanto espaço diante de coisas como Intocáveis, Dois Dias em Nova York ou Medianeras, que paparicam o espectador de forma vergonhosa. É uma situação que já vem de alguns anos, e explica por que grandes filmes europeus como Les Amours d'Astrée et Celadon, A Religiosa Portuguesa (como qualquer outro de Eugène Green) e Bellamy, entre muitos, ficam lamentavelmente distantes de nosso circuito (e não raro ficam ausentes de nossos festivais).
Ao filme
Este novo jogo filmado de Resnais é baseado em duas obras, de fases distintas, do dramaturgo francês Jean Anouilh. Uma delas é Eurídice, peça escrita em 1942 que atualiza o mito de Orfeu e Eurídice. A outra é Cher Antoine ou l'Amour Raté, peça de 1969 que fornece a base para a construção narrativa de Vocês Ainda Não Viram Nada. O filme estruturalmente remete ainda a uma das obras maiores de Resnais, Providence (1977), intrincado monumento à criação artística que contrapunha o criador a suas criaturas. Desta vez, porém, as regras são mais claras. Antoine, um diretor de teatro, morre, e seu último desejo é fazer com que os atores que interpretaram no passado alguma de suas encenações de Eurídice se encontrem para um velório em uma de suas mansões (ele tinha o hábito de comprar mansões nos lugares de que gostava – mansões ou salas de cinema?). Seu velório é marcado pela exibição, numa tela de cinema estrategicamente colocada num salão central e espaçoso, de uma última e experimental encenação da mesma Eurídice. Os atores não resistem à provação e começam a representar (ou melhor, imaginar que representam) novamente seus papéis. O jogo é esse. Sabemos que a representação não acontece senão em suas mentes, pois vemos os atores, por vezes, assistindo à peça filmada com atenção. Suas projeções é que representam novamente a peça, montam cenários, controlam a luz e, por intervenção de Resnais, têm a tela dividida em dois (e até quatro, num momento). Esse efeito não é gratuito. É parte da estratégia do filme lidar com a inegável herança teatral do cinema, e como tal, pensar em como o avanço da técnica não conseguiu anular ou enfraquecer o princípio básico que rege o cinema: a encenação. Temos assim diversas encenações diferentes. A encenação de Antoine, que na verdade finge sua morte; a encenação filmada que os atores veem; as encenações que esses atores projetam e a encenação de Resnais, cuja função primordial é promover a fusão de todas as encenações existentes.
Do jogo extraímos também um potente comentário geracional. Os atores que vemos na peça filmada são todos jovens, novos rostos de uma companhia teatral que Resnais quis promover com seu filme. Resnais está com 90 anos (89 durante as filmagens). Os atores convidados para o falso velório estão na faixa dos 40 anos (Mathieu Amalric, Anne Consigny), dos 60 (Pierre Arditi, Sabine Azéma), dos 80 (Michel Piccoli). É como se o diretor passeasse por diversas gerações artísticas (a arte não morre?).
A mais jovem Eurídice não quer ser vista no enterro final (o verdadeiro?). Esconde-se atrás do muro enquanto vê os veteranos passarem por ela. Empalidece diante das estaturas que vê pela frente. O peso de uma arte construída tijolo por tijolo ao longo de muitos séculos a esmaga. Antoine encena um velório porque precisa que os atores de diferentes grupos e origens se reúnam para uma última e definitiva montagem de Eurídice. Resnais, como Antoine, reúne aqui boa parte dos atores com que trabalhou: Pierre Arditi, Sabine Azéma, Lambert Wilson, Michel Piccoli, Anne Consigny (a grande ausência é André Dussolier). Vemos, nos dois casos, uma reunião promovida por um diretor que já se aproxima de seu ocaso físico. Como Antoine, que deseja encenar novamente sua peça preferida com seus atores preferidos revezando-se nos mesmos papéis que interpretaram anteriormente, Resnais quis reunir sua fauna antes que seja tarde demais (esperamos, contudo, que siga o destino de Manoel de Oliveira e ainda nos brinde com sua arte por uns dez anos, no mínimo)*.
O filme, que começa e termina no céu, promove assim o encontro entre o criador e seus instrumentos, entre o demiurgo e os atores que movem seu mundo. Diferentemente de Providence, porém, em Vocês Ainda Não Viram Nada tudo é muito claro, cristalino, passível de ser compreendido sem grande esforço. Desde meados dos anos 1980 (com A Vida é um Romance e sobretudo Mélo), Resnais deixou um pouco de lado seus intrincados testes de laboratório com personagens (ratinhos) em favor dos jogos narrativos, nos quais os acontecimentos são inesperados, mas codificados pela convenção cinematográfica. A poesia suplantou o cerebralismo. Nada mais justo que ela prevaleça nesta nova ode ao teatro e ao cinema.
Sérgio Alpendre
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* O imdb lista um novo filme dele em pré-produção. Seria mais uma adaptação do dramaturgo Alan Ayckbourn, de quem Resnais já se serviu em Medos Privados em Lugares Públicos e Smoking/No Smoking.
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