Ano VII

Killer Joe

segunda-feira mar 18, 2013

Killer Joe (2011), de William Friedkin

O primeiro barulho que se ouve em Killer Joe, é aquele característico da tampa metálica de um Zippo se abrindo. O segundo, é o som forte de um tiro.

Durante toda a sua projeção, o isqueiro irá antecipar as violências psicológica e física que acabarão por enterrar de vez esta família texana que, desde a primeira cena, já surge arruinada: em uma noite de tempestade e trovoadas, Chris (Emile Hirsch) surge desesperado no estacionamento de trailers onde mora seu pai (Thomas Haden Church). Lá é recebido por um cachorro raivoso e pela virilha nua de sua madrasta (Gina Gershon). 

Para conversar com seu pai sem que sua irmã caçula Dottie (Juno Temple) os escute, o jovem o leva a uma casa de strip-tease. O plano e o ambiente são típicos dos neo-noirs: sua mãe roubou a cocaína que ele deveria vender,  deixando-o endividado com os mafiosos locais. Chris sabe que sua genitora tem um seguro de vida e, segundo lhe foi dito, o valor é de cinquenta mil dólares e a beneficiária é sua ingênua irmã. A ideia é contratar um detetive, Joe Cooper (Matthew McConaughey), para assassinar a velha e, então, repartir a grana. 

Mesmo antes deste personagem que nomeia o filme aparecer, está latente o niilismo degenerado e farsesco pretendido por William Friedkin e pelo dramaturgo Tracy Letts – pela segunda vez consecutiva trabalhando com o cineasta, adaptando, ele mesmo, uma de suas peças. Pois se há algo do qual não se pode acusar Killer Joe, é de não entregar aquilo que, desde o início, havia prometido:  no caso, um elogio gótico sobre a derrocada da família americana; afinal, não é por acaso que o matador teve Joe como apelido, e o sobrenome dos outros envolvidos é o mais do que tradicional, Smith. 

O que o torna interessante, no entanto, não é esta constante e inalterável reiteração cínica e insana da amoralidade do americano; pelo  contrário: seu último ato (apesar de coerente e, por vezes, ultrajante) demonstra-se bastante desgastado, como a bandeira americana estampada no boné do patriarca deste clã. Com quase meia-hora de duração, e uma tensão que nem sempre se sustenta, sua histeria nunca consegue um efeito verdadeiramente desnorteador, como ocorrerá em Possuídos (a outra parceria desta dupla, sem dúvida superior a esta) ou, ainda, nos melhores momentos deste filme. 

Uma das razões que o tira um pouco deste cansativo inferno amoral é o caráter dúbio de Joe, uma variação daquele que é o maior personagem da história do cinema: o inesquecível pastor Harry Powell, interpretado por Robert Mitchum, no incomparável O Mensageiro do Diabo. Ambos são dotados de um grande poder de articulação, além de um carisma sedutor e, não raro, aterrorizante, que terminarão por sepultar qualquer possibilidade de união de uma família que, de algum modo, irá lhe acolher. 

No entanto, enquanto Powell é casto, o personagem interpretado por McConaughey é mundano e, se em Killer Joe, antes o sexo, a corrupção e a violência já estavam postos à mesa, com a sua entrada um elemento absurdo como o amor parece, de uma maneira doentia – evidentemente – possível à narrativa. 

São estas cenas, dele com Dottie, que dão dignidade e força ao filme. Lembremos a primeira, quando o assassino de aluguel vai à casa da menina encontrar-se para acertar os termos do serviço. Esta é também a apresentação de Joe, enquanto que ela, já a vimos como alguém puro, com fotografias de Justin Bieber na porta de seu quarto e vários ursinhos de pelúcia em sua cama – em outra cena, no entanto, ela surge quase como uma aparição macabra, ao surgir na tempestade interrompendo a conversa de seu pai com seu irmão para, mais tarde, afirmar que concorda com o matricídio. 

Voltando ao encontro, o primeiro do insólito casal, a vemos imitando os golpes de atores de uma produção de kung fu, em frente à tevê. Quando Joe entra na casa, sem ser convidado, Friedkin irá ressaltar os dois crucifixos que ficam nas paredes deste trailer, enquadrando-os,  por vezes, simultaneamente. Mesmo em um trabalho um tanto desequilibrado como este, somos capazes de encontrar na obra de um bom cineasta pequenos achados narrativos: já visivelmente encantado com a donzela, o matador de aluguel a pede para preparar um café e, enquanto isso, senta-se à mesa e lhe conta uma anedota sobre um namorado que ateou fogo na própria genitália, para chamar a atenção de sua namorada. Ao fundo, escutamos o som da água, fervendo em sádica harmonia com a história sendo contada. 

Após este momento, Joe vai ao encontro de seus atrapalhados contratantes  em um bar de sinuca abandonado. Ao descobrir que eles não têm o dinheiro para tal serviço, decide abandonar o caso mas, ao abrir a porta deste local claustrofóbico, vê a menina – linda e inocentemente iluminada – dançando sob os raios de sol. Ele mexe no Zippo e vira-se aos outros dois,  pedindo-a  como caução. O pai concorda: “pode fazer bem pra ela!”.

Ainda mais emblemática, é aquela que seria uma espécie de noite de núpcias torpe dos dois. Joe desliga a televisão e, enquanto a garota chora em seu quarto, por saber onde todos esperam que ela chegue com aquele jantar, liga o rádio. Escutamos a versão country de "These Boots Are Made for Walking", cantada por Lee Hazlewood. Esta mesma música, na voz de Nancy Sinatra, foi imortalizada no primeiro plano da segunda (e absurdamente subestimada) parte de Nascido para Matar, de Stanley Kubrick.

Onde o cinismo deste era mais escancarado (“Me suckee-suckee”;“Me love you long time. Me so horny”, diz a prostituta vietnamita durante sua negociação com Joker, o soldado interpretado por Matthew Modine), o de Friedkin é mais soturno, carregando a cena com uma tonalidade perturbadora.

E se os diálogos do roteiro são ótimos, aqui encontram-se dois dos melhores, ainda que irremediavelmente curtos. Após convencer a ninfeta a sair do quarto, ela revela-se virgem. Joe diz, já atormentado pela tensão do momento: “Eu sei”, e Friedkin corta para seu isqueiro acendendo uma vela.

Quando a garota já está se desnudando, Joe pede a ela para tirar sua “roupa íntima” (underwear). Para seu deleite, ela o corrige: “É calcinha” (panties). Durante este momento, nesta perversa noite do caçador, Friedkin irá colocar em quadro o crucifixo, no fundo da sala. 

Pena que após o assassinato da mãe, o único foco realmente de interesse recaia sobre a descoberta de que a personagem mais humana desta história seria o irmão (e, por isso também, o mais apalermado, tentando fugir dali o quanto antes). Pensamos, inicialmente, que esta seria Dottie, imaculada e isenta. Mas quando o cineasta coloca sua risada ao fundo, enquanto vemos o carro com o corpo da matriarca explodindo e o rosto de desespero de seu irmão  olhando-o, percebemos não ser este o caso. Na cena seguinte, enquanto o pai fala com o advogado sobre o seguro de vida da falecida, a garota se diverte, irascivelmente, vendo a crueldade tão comum dos desenhos animados, em um restaurante. Seu irmão irrita-se e parte para desligar a televisão; outro belo instante (o último do filme), em um todo irregular, mas não ausente de grandes momentos. 

Bruno Cursini

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