Ano VII

Pietá

sexta-feira mar 15, 2013

Pietá (Pieta, 2012), de Kim Ki-duk

A simples menção ao cinema de Kim Ki-duk desperta humores. Citar seus filmes pregressos – A Ilha, Casa Vazia – é pisar em areia movediça onde se misturam tanto os apaixonados pela “potência do discurso” do coreano quanto os céticos – às vezes raivosos – que dizem “nesse conto eu não caio mais”.

No meio dessa cena “eu já sei o que pensar do Kim Ki-duk” aparece Pietá, uma observação dos limites (ou ausência deles) do amor entre mãe e filho tendo como pano de fundo um comentário sobre o capitalismo. O ambiente é um distrito industrial decadente. Donos de pequenos negócios de metalurgia afogam-se em dívidas com um agiota. Entra em ação o malvado Kang-do para cobrá-las, com a violência que for necessária: amputam-se dedos ou braços, pernas são estraçalhadas, filhos são humilhados na frente de suas mães.

Partindo da representação de Michelangelo do corpo de Jesus nos braços de Maria, o filme constrói sua maneira de registrar os rostos da mãe e do filho. Rostos sempre à espera, em posição de clemência. Esses olhos puros que inspiram piedade – seja de um personagem ou do espectador – tornam-se perturbadores quando o filme investe pesado na ambiguidade da relação de Kang-do, o sanguinário, e Mi-son, a mulher que repentinamente aparece afirmando ser sua mãe.

Pietá não é um filme vazio de sentido. Estão lá o capitalismo predatório, a proliferação dos arranha-céus, relações desiguais de poder, os limites do ser humano para manter a sanidade, amor entre mãe e filho, a tríade crime-culpa-castigo, um retrato da mulher como agente e do homem como ser passivo ou malvado, a apropriação contemporânea de um signo religioso.

As enunciações que o filme faz, porém, são soterradas por um senso equivocado de cinema e direção que Kim Ki-duk demonstra. Quando sai dos rostos e se volta à interação dos corpos dos personagens e sua relação com o espaço, Pietá deixa a a sensação de que invariavelmente a câmera está no pior lugar possível.

Kim lida atabalhoadamente com o digital. Ora recorre ao clichê da câmera balançando para transmitir a tensão da cena, ora tropeça no zoom, tosco, travado no meio da operação. A direção de Kim lembra a indecisão de goleiro inseguro com cruzamentos na área: não sabe se vai na bola e espana ou se fica debaixo das traves aguardando o desfecho da jogada.

Conforme Pietá avança, só faz crescer a percepção de que ele observa a cena na pior perspectiva possível, corta quando não é para cortar, enfatiza quando não é necessário e ainda adota procedimentos apelativos baratos – o que dizer do trabalhador que aceita cortar os dedos a despeito de amar tocar violão?

Mas o filme é forte, dirão os que enxergam méritos nessa obra de Kim Ki-duk. Aqui costuma entrar em ação um processo de valoração, às vezes imperceptível, que funciona na equação Abordagem Frontal = Filme Bom. Não raro ela desemboca na meritocracia do “soco no estômago”, tal como aconteceu na Mostra do ano passado, mas com Joachim Lafosse e seu Perder a Razão que, a despeito de mal filmado e de criar claustrofobia num tour de force, caiu nas graças pela radicalidade do desejo de liberdade da mãe.

Coragem é, sim, um mérito, Porém, é preciso que, além de coragem, haja um filme. Pieta muitas vezes sequer é um filme, mas um cozidão de capitalismo cruel e amor de mãe e filho, embalado às pressas, de qualquer jeito, para mostrar como o ser humano é cruel.

Heitor Augusto

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