Ano VII

Pombos, Paisagens e Arte

segunda-feira mar 4, 2013

Pombos, Paisagens e Arte

Por Fernando Watanabe

Essa obra-prima, com 25 anos de atraso, projeta Michael Haneke na grande mídia e na boca do povo da cultura média – sem que isso seja um mérito, afinal, o carimbo de autenticidade do Oscar tem esse poder mesmo com obras que divergem radicalmente da lógica da premiação dos judeus norte-americanos que controlam o cinema.

É estranho ver o cineasta de filmes duros como O Vídeo de Benny, Funny Games ou O Sétimo Continente na capa de cadernos de cultura deste domingo (24/02) em função das indicações da Academia, esse antro de conservadorismo elitista que prioriza obras que geralmente envolvam a resolução de tensões sociais em jornadas heróicas. Amour não tem nada de heróico e tampouco resolve qualquer tipo de tensão. Ao contrário, as expõe como quem tira o band-aid de supetão no altar de uma missa para expor sua ferida. É por isso que muita gente não gosta da obra do diretor, pois enxergam algo de vulgar e apelativo no cinema dele. Não sou desses. A Fita Branca era um filme do Mal, ou seja, uma obra que se dedica a reconstituir a lógica humana do Mal que levou à Primeira Guerra e ao nacional-socialismo alemão. O filme também foi indicado ao Oscar.

O fato de Haneke se tornar quase um "habitué" do Oscar prova mais uma vez a força do sistema cultural atualmente dominante: aquilo que é bom e se encontra à margem pode vir a ser incorporado pelo centro, pois os dois lados, a princípio, só têm a ganhar. Uma incorporação soft, a princípio, uma vez  que as indicações ao Oscar ajudam a projeção de um trabalho muito distinto mundo afora, sem que isso necessariamente acarrete mudanças futuras no trabalho do diretor. Seria bem diferente se ele se mudasse para Los Angeles, por exemplo. Bom para o cineasta e para o público, que pode ter um pouco mais de acesso a seus filmes, que, em sua maioria, são importantes.    

Mas, de tudo o que Amour tem (ou que eu, na minha pequeneza diante de uma obra deste porte, consegui captar), gostaria de falar de duas coisas – que são menores dentro da narrativa principal, mas que, de certa forma, a enriquecem e a completam.

Lição de roteiro: o Pombo e os Quadros são elementos secundários decisivos na estrutura do filme e na caracterização dos personagens.

1) O Pombo, em três momentos: na primeira cena, o velho gentilmente coloca o pombo para fora de casa. Um tempo depois, vemos que ele desenhou o pombo e o emoldurou na parede da sala, mas isso não é enfatizado pela narrativa. O velho é pintor (algo que também não é mencionado verbalmente por nenhum personagem). O desenho é todo em preto (enquanto o pombo real é branco), e seus traços de estilo revelam uma certa violência inerente ao momento vivido pelo personagem. Um certo pessimismo (ou simplesmente um despojamento?) que entra radicalmente em contraste com os belos quadros de amplas paisagens naturais que, de forma inesperada, interrompem o filme a certa altura.

2) Essas paisagens são inseridas na montagem exatamente após a cena em que o velho esbofeteia a mulher. Como se, após atingir um pico de tensão que não tem solução, o filme e o personagem encontrassem como única alternativa a Arte.

Por exemplo, em um filme norte-americano (em um Thomas Anderson, para só falarmos de bons cineastas hoje) não seria nada difícil encontrar o personagem cachaçando depois de ter agredido a mulher e arrependido. O universo de Haneke, no entanto, é sofisticado. O mais legal é que essa sofisticação nada tem a ver com "finesse", ou seja, nada tem de frívola ou afetada. Essa sofisticação é algo que está inserido e inter-relacionado com a violência humana que permeia seus filmes. Como se a arte fosse uma válvula de expressão (não de escape) para o tumultuado mundo interior de seus personagens. A professora de piano Isabelle Hupert, no magnífico filme de 2001, é uma das personagens mais interessantes e vivas do cinema contemporâneo, e em função dela, seu pupilo (Benoit Magimel), também o é.

Curiosamente, o par Emanuelle Riva/Alexander (nome do personagem), professora de piano e ex-aluno talentoso, remetem ao par Huppert/Magimel do filme de 2001, com a diferença de que a dupla mais recente parece ter tido uma relação mais saudável e positiva.  
 

Voltando às pinturas das grandiosas paisagens naturais, também vale lembrar que elas aparecem em uma sequência de planos fixos e silenciosos: exatamente da mesma maneira que os interiores do apartamento onde o casal vive, que são mostrados vazios e silenciosos após a cena na qual Emanuelle Riva deixa o bule cair. Um contraste radical entre duas paisagens, a exterior (o apartamento), povoada de rancor, morte, decadência e conflito, e a interior (a mente do velho), habitada por beleza, alegria e liberdade eterna. Lembra um pouco o famoso filme Saba, de Gregório Graziosi, com a diferença de que em Amour a ambivalência entre o "urbano/natural" (velho/novo, passado/presente, realidade/imaginário, opressão/liberdade) parece partir do próprio personagem com mais naturalidade.

Voltando ao Pombo – esqueci de comentar seu terceiro momento -, após a primeira invasão/expulsão, e após ter virado um desenho, ele invade o apartamento, de novo, e a essa altura Riva já morreu. O velho então, pega um cobertor e vai se iniciar o duelo. Com muitas dificuldades físicas, o velho envolve o animal com o cobertor. Porém, ao invés de expulsá-lo, ou matá-lo (algo pelo qual esperamos, uma vez que acabamos de vê-lo matar  a própria esposa), ele se senta e acaricia o pombo. A cena mais bela do filme, pelo contexto na qual está inserida, pela beleza plástica, pela economia narrativa e pela profundidade que ela permite intuir. O velho trata o pombo com amor.  

 

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