Ano VII

A Hora Mais Escura

sábado mar 2, 2013

A Hora mais Escura (Zero Dark Thirty, 2012), de Kathryn Bigelow

Em seu filme anterior, Guerra ao Terror (2009), a diretora Kathryn Bigelow partia do coletivo (o cotidiano de um grupo de desarmadores de bombas no Iraque pós-11 de Setembro) para o individual (o sargento William James, impulsivo e autodestrutivo, torna-se central nas preocupações e atenções do enredo). O processo parece se inverter em A Hora mais Escura: a agente da CIA Maya surge em cena de rosto coberto, para não ser reconhecida por um islâmico durante uma sessão de tortura; em dado momento, recebemos informações esparsas sobre a personagem, que serão diluídas ao longo da narrativa. Na prática, pouco ou nada sabemos sobre Maya, exceto suas características obsessivas em encontrar Osama Bin Laden, a falta de amigos e a sublimação do sexo em prol do trabalho. Por paradoxal que seja, temos um filme que, quanto mais se aproxima de sua protagonista na superfície, mais se afasta dela na intimidade, até que não reste praticamente nada.

Esse distanciamento é o maior ponto de tensão em qualquer relação com o filme. O “vício” do sistema de produção do cinema dito comercial (não só o americano) de sempre tornar os personagens figuras identificáveis, ou o de tentar aproximar o espectador dos protagonistas para que eles sejam “compreendidos”, encontra barreira quase intransponível na construção que Bigelow imprime a Maya. Em A Hora mais Escura, jamais nos será dado acesso aos verdadeiros sentimentos, pensamentos e anseios da garota, exceto que ela quer capturar Bin Laden. Sua gelidez e excessivo profissionalismo a afastam de uma suposta “simpatia necessária”, fazendo com que a linguagem do filme também soe distanciada, dando conta das interações apresentadas a partir de um ponto de vista com o qual não temos maiores relações.

Daí vêm, provavelmente, os olhares atravessados que muitos espectadores (e críticos) impuseram à abordagem da tortura em A Hora mais Escura. O discurso quase sempre era o de cobrar que Bigelow deveria ter “condenado” a prática, ou dado um ponto de vista mais claro e objetivo sobre o tema. Esse tipo de exigência, tão afastado da fruição, não poderia estar mais distante do que o filme propõe, tanto artística quanto politicamente. A tortura, por si mesma, é feia, suja e grotesca, e sua exposição (menos ou mais explícita) deveria ser suficientemente incômoda para que se compreenda o quanto ela é moralmente inaceitável. Não é preciso que um personagem entoe algo como “a tortura é ruim” ou faça cara feia ou vomite em cena para que isso seja percebido. Para dar exemplos variados, a série 24 Horas ou mesmo filmes brasileiros de momentos históricos distintos (O Caso dos Irmãos Naves, em 1965; Tropa de Elite, em 2007) sofreram o mesmo tipo de cobrança, por mais que o ato da tortura fosse essencial em suas construções estéticas e narrativas.

Ao longo de A Hora mais Escura, a problematização da tortura é colocada em pelo menos duas situações:  uma, mais sutil, é o momento em que os agentes discutem como vão lidar com as pistas que possuem, enquanto, na TV, o presidente Obama comunica que as “sessões de interrogatório” não vão mais ser aceitas; a outra é a constante referência à prática do achaque por parte dos engravatados da Inteligência, que agora precisam provar suas informações, e não mais arrancá-las à força na base da coerção física. Ora, só é possível que o espectador entenda o quanto a tortura era um procedimento rotineiro e facilitador dentro daquela CIA apresentada pelo filme justamente porque, na primeira metade, Bigelow tratou a prática como rotineira e facilitadora. De repente, o recurso não mais existe, e agora a agência precisa se virar (e se adaptar) aos novos tempos. Não há justificativa, nem defesa. Mais incisivo do que isso seria o filme fazer discursos sociologizantes e panfletarismo, coisas que não têm absolutamente nada a ver com o cinema de Bigelow desde sempre. Muitas vezes, o tal olhar atravessado sobre determinado aspecto controverso de um trabalho artístico pode estar muito mais numa visão pré-concebida de quem olha, ou da vontade de se ter as expectativas e valores pessoais atendidos, em vez da disposição em dialogar e enfrentar aquilo que está sendo realmente proposto pela obra.

Dito isso, é interessante perceber o quanto A Hora mais Escura se torna, a cada minuto mais e mais durante sua metragem, um filme sobre Maya, e não apenas o relato da caçada a Bin Laden. Por mais que Bigelow domine a encenação e mantenha o filme em constante movimento (com destaque para as cenas de bastidores de poder e especialmente a impressionante sequência final da invasão), a câmera está bem mais interessada em enquadrar Maya e retratar cada um de seus movimentos em relação aos estímulos que lhe atingem. Jovem e impetuosa, a agente (em interpretação magnífica de Jessica Chastain) faz de sua missão o motor de tudo ao redor, e o filme esvazia cada outra possibilidade que possa lhe surgir no horizonte. O peso (histórico e pessoal) da tarefa de achar o terrorista é tamanho que, ao ser bem-sucedida, à personagem não resta mais nada. Maya se afasta de todos, caminha pela noite, entra num avião enviado só para ela e não consegue responder a uma pergunta muito simples: “para onde você quer ir?”.

Para onde ir? O que resta a Maya? O que sobra de quem se compartimentou num único casulo e, após atingir o objetivo buscado, agora deve se fragmentar em outros caminhos e em outras possibilidades? No original, o filme se chama Zero Dark Thirty, termo militar que define a hora da madrugada em que o céu ainda está completamente escuro (diferente da infeliz transposição de The Hurt Locker para Guerra ao Terror, desta vez os distribuidores brasileiros acertaram incrivelmente ao optarem por A Hora mais Escura). Na última cena do filme, Maya vive sua “zero dark thirty” pessoal: para onde quer que ela olhe, há apenas escuridão. Diante da pátria, seu feito é heroico; intimamente, o significado daquilo talvez não seja tanto quanto possa aparentar numa primeira olhada. Não há prêmios ou recompensas. Só o vazio.

Ficcionalmente, Kathryn Bigelow fecha um ciclo de reações pós-11 de Setembro no qual ela contribuiu também com Guerra ao Terror e que inclui ainda Redacted (2007), de Brian De Palma, e as séries televisivas 24 Horas e Homeland. A “hora mais escura” de Maya é também a da própria ficção americana sobre o assunto: com Bin Laden morto, o terror contido, a tortura proibida e boa parte dos “inimigos” já dominados, como e para onde mais olhar? O filme de Bigelow não é só grande cinema, mas o limite daquilo que retrata, tanto na base da “vida real” como dentro dos próprios mecanismos da ficção. É algo próximo ao que Clint Eastwood fez com o  faroeste e a retratação histórica de uma época mítica em Os Imperdoáveis (1992): depois de A Hora mais Escura, a  abordagem do pós-terror e da conduta americana em “limpar o mundo” precisará encontrar novos caminhos.

Marcelo Miranda

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