Tiradentes 2013 – Balanço
Tiradentes 2013 – Balanço: O Eixo Fora do Centro
1. Em várias das micro-entrevistas dos realizadores à TV Mostra dizia-se que “Tiradentes está se consolidando…” ou como espaço para a difusão de um cinema mais arriscado ou como palco de discussões. Já é hora de tirar a frase do gerúndio, assumir esse protagonismo da mostra dentro do contexto do cinema brasileiro, pensar seus impactos e caminhos futuros. Após 16 edições, sendo as últimas sete com curadoria definida, priorizando novos realizadores, dá para assumir que a Mostra de Tiradentes, tal como passamos a conhecê-la desde 2008, já está consolidada.
2. A Mostra de Tiradentes não é só a janela para circulação de um certo tipo de cinema. É também um lugar em que esse certo tipo de cinema, que para economizar linhas costumamos chamar de “ousado”, é observado com respeito, sem pré-conceito. Esse é um dos principais méritos da mostra. Em 2013, o melhor exemplo é Doce Amianto, de Guto Parente e Uirá dos Reis, que dificilmente teria tanta repercussão se não fosse pelo clima do evento, propenso a prestar a devida atenção a “filmes-ovni”.
Tal atenção vale para outros longas nos últimos anos. Djalioh e Na Carne e na Alma em 2012; Os Residentes, que veio dos narizes torcidos do Festival de Brasília para a consagração em Tiradentes em 2011; Pacific em 2010, Sábado à Noite em 2008, entre outros. O barulho de Doce Amianto neste ano, ou a vitrine aos três longas da mostra Sui Generis, com destaque a Semana Santa, não é um caso isolado.
3. A dissonância faz-se necessária à cena cinematográfica por lá fomentada. Passou-se anos escancarando a janela para que a produção fora de centro – entendendo o centro mais do que localização geográfica, mas sim modelos de produção – ganhasse visibilidade, possibilidades de trânsito. A janela está aberta, os filmes passam por ela. O perigo é que o fora de centro torne-se um centro autoprotegido na bolha. Que “experimentação”, “ousadia”, “invenção”, “filme de amigos”, “cinema de encontros”, “trânsito de afeto” transformem-se em valores por si só.
A crítica, que em Tiradentes tem um raro espaço qualificado à sua espera, precisa comparecer ainda mais. Não em número, mas em força, especialmente nos debates com público e realizadores. É fundamental a ocupação desse espaço para que Tiradentes, o mais interessante festival de cinema no Brasil, não estacione. A problematização dos filmes é peça-chave no amadurecimento dessa mesma cena.
4. A temática Fora de Centro deste ano evidenciou o que já podia ser percebido em edições anteriores: o intercâmbio de realizadores, assim como os coletivos espalhados por vários estados brasileiros, é realidade sólida aparentemente sem volta e fator determinante para a existência de filmes – para entender esse cenário faz sentido à recorrência permanente ao “filme de amigos”.
Curtas como Meu Amigo Mineiro e Não Estamos Sonhando, que envolvem esforços de Ceará-Minas Gerais e de três coletivos/produtores (Alumbramento, Filmes de Plástico e Teia). Ou o longa O Sol nos Meus Olhos, produção RJ/MG/DF que também conta com profissionais paulistanos e capixabas. Ou os dois longas de Taciano Valério, diretor que floresceu como curta-metragista na Paraíba, mas que mora e produz há cinco anos em Caruaru, Pernambuco, o “fora de centro ao quadrado”, como ele definiu no debate em Tiradentes, onde rodou Ferrolho.
Se o centro – tomando-o como modo de produção fincado no edital, na renúncia fiscal, que tenta desembocar na exibição no circuito comercial – não é autossuficiente nas suas aspirações protoindustriais, aparentemente o fora de centro achou como sobreviver das próprias pernas.
5. A primeira vitória de uma produção de São Paulo desde que a Aurora passou a ser a principal vitrine da Mostra de Tiradentes em 2008 abre outra brecha na estrada Ceará-Minas-RJ. O prêmio a Os Dias com Ele representaria uma reinserção da produção paulistana no eixo de “concentração de energias estéticas”, roubando uma frase do curador Cleber Eduardo no catálogo do ano passado, ou um exemplo isolado?
Me parece, por ora, que é um exemplo isolado. A sensação geral é que São Paulo perdeu o protagonismo do conjunto desse cinema (longas ou curtas) mais interessado ou na especulação audiovisual ou no ensaísmo cênico, roubando a definição de Eduardo e Francis Vogner dos Reis.
São raríssimos os jovens diretores baseados em São Paulo dos quais esperamos com atenção seus próximos filmes.
6. Diferentemente do ano passado, quando A Cidade é uma Só? Saltou com naturalidade à frente dos outros longas, a mostra Aurora deste ano esteve nivelada com um ou outro filme chamando mais atenção nesse ou naquele aspecto.
No rigor da experiência, Os Dias com Ele e Matéria de Composição estão próximos. O longa de Maria Clara Escobar destaca-se pela tensão permanente da equação câmera-direção-personagem, enquanto a investigação de Pedro Aspahan sobre o processo de composição musical permite refletir acerca da observação humana do mundo e sua tradução em arte.
Lins – Onde Os Acidentes Acontecem é disparado o que tem as imagens mais bonitas, ainda que seu desenvolvimento repita o que já vimos de filmes com personagens doloridos e calados, resultante de um acontecimento traumático, mas que aos poucos se reintegram ao mundo – o filme de Alexandre Veras guarda semelhanças com O Sol nos Meus Olhos.
O excesso da vontade em dizer marcam, e puxam para baixo, Flutuantes e Ferrolho. O filme de Rodrigo Savastano ora parece televisão, ora cinema; ora é um sub-Árvore da Vida, ora é sátira política à Dildu de A Cidade é uma Só?; ora é filme ecológico, ora é filme filosófico sobre personagens em movimento. Já o filme de Taciano Valério não faz uma satisfatória transição do curta, seu formato original, para o longa. Quando se concentra no protagonista acontece a fluidez. Quando expande o universo de outros personagens ilustrativos, ganha-se em potência, mas perde-se no conjunto.
Ventos de Valls constroi o espaço da família para recuperar memórias de um passado, mas a filma mal, além de se deslumbrar na ligação passado-presente representada pela menina Ana. O pior da mostra Aurora é, disparado, Nas Minhas Mãos Eu Não Quero Pregos. Não fosse a importância de seu personagem, Maurino de Araújo, não teria condições de circular num festival de grande porte como Tiradentes.
7. A Paraíba já ensaiava uma entrada no circuito fora de centro, especialmente por uma cena dedicada ao cinema de gênero, chegou de vez. Foram dois longas (Onde Borges Tudo Vê e Ferrolho, este dividindo sede com Pernambuco), dois curtas na mostra Foco e um curta na mostra Formação. Na década passada seria difícil imaginar que a Paraíba, que oferece como referência histórica o documentário Aruanda, participaria com cinco produções num festival de cinema. Surgidos num cenário ainda em construção, os novos filmes estão abaixo dos outros que transitam na beirada do centro.
Os dois longas de Taciano Valério têm momentos interessantes, mas um conjunto frágil. Cova Aberta apresenta uma clara evolução ao curta anterior de Ian Abe, Mais Denso que Sangue, mas sofre para manter o ritmo até desembocar num final truqueiro e previsível. Vasto Mundo é o pior curta da mostra Formação.
Mas vale deixar o processo continuar e ver onde dá.
8. Falando na mostra Formação, os curtas se dividem em, grosso modo, os que tem um forte aparato de produção, resultando em produtos bonitos, mas que somem da memória logo após a sessão, e os com menos dinheiro, mas com uma vontade a mais, com maior clareza dos procedimentos de cinema.
No primeiro entram As Órbitas (FAAP) e Quando o Céu Desce ao Chão (USP). No segundo, Através (FAAP), Elefante Invisível (Vila das Artes), Os Invasores (UFF) e Veraneio (UFRB). Em comum aos quatro, a irregularidade: ora uma decupagem inteligente e consciente, ora planos mal resolvidos. Mas especialmente os realizadores dos quatro curtas têm um caminho a percorrer.
9. Não me sinto confortável para comentar as principais seleções de curtas-metragens – Foco, Panorama, Praça e Fora de Centro – porque não vi filmes suficientes. De passagem, digo que gostei do vencedor, Meu Amigo Mineiro, ainda que não o veja como um grande curta com força de ganhar uma mostra de cinema – mas me falta medida de comparação com os outros. Na mesma sessão, Pouco Mais de um Mês também é bom.
Da Panorama, já comentei em outros textos a força de A Onda Traz, O Vento Leva, Câmara Escura e especialmente O Duplo, filme de decupagem soberba. Canção Para Minha Irmã caiu ainda mais na revisão. O Tradutor, Colinas Como Elefantes Brancos e Invisíveis me deixaram envergonhados. Não Estamos Sonhando é uma boa carta de intenções. Mauro em Caiena foi uma boa surpresa.
10. A mostra Sui Generis foi uma boa solução para receber filmes que fogem completamente do estabelecido. Agrupá-los de tal forma já alerta o que virá, preparando o humor da sessão. Dos três longas assisti a Semana Santa e Vertigem Branca. O primeiro é muito divertido, despreendido, toca o f…-se e deixa a bola rolar. É bastante irregular – a filmagem da procissão é fraca se comparada à cena da piscina ou a pequenos desvios que causam surpresa (o frei gay, o padre que bate na bunda da namorada etc).
O segundo é atraente na trajetória do homem só e na criação do carnaval lúdico com as mulheres que encontra. Já nos trechos em preto e branco, suposta revelação do verdadeiro “eu” daqueles personagens, não entendi o porquê.
Heitor Augusto
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