Melhores filmes de 2012
Melhores filmes de 2012 (somente filmes que entraram no circuito comercial de São Paulo)
1. MISTÉRIOS DE LISBOA, de Raúl Ruiz (260 pontos; dez menções)
2. COSMÓPOLIS, de David Cronenberg (186 pontos; oito menções)
3. HABEMUS PAPAM, de Nanni Moretti (176 pontos; oito menções)
4. ESSENTIAL KILLING, de Jerzy Skolimowski (172 pontos; oito menções)
5. HOLY MOTORS, de Leos Carax (170 pontos; oito menções)
6. L’APOLLONIDE, Bertrand Bonello (116 pontos; seis menções)
7. UM ALGUÉM APAIXONADO, de Abbas Kiarostami (96 pontos; seis menções)
8. CAMINHO PARA O NADA, de Monte Hellman (84 pontos; quatro menções)
9. DRIVE, de Nicolas Winding Refn (76 pontos; quatro menções)
10. AS QUATRO VOLTAS, de Michelangelo Frammartino (70 pontos; quatro menções)
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1. MISTÉRIOS DE LISBOA
Sempre que formos acusar nosso circuito de deficiente e incompreensível (como explicar a ausência de O Abrigo – saído diretamente em DVD – ou do último e incrível Coppola, Twixt?) devemos, também, ressaltar a audácia de lançamentos como este: um monumento que passa de quatro horas e que não desejaríamos que fosse, sequer, um minuto menor .
Mistérios de Lisboa é uma fresta ao singular universo de Raúl Ruiz: uma fábula romanesca ramificada de maneira labiríntica, trazendo muito do que já é familiar àqueles tarimbados com suas aventuras.
Por seus ângulos inusitados, sua profundidade de campo e digressões sobre as possibilidades da ficção, uma de suas influências claras é Orson Welles (pensemos, inicialmente, em Grilhões do Passado e Verdades e Mentiras). Mais adiante, há um sentimento que o liga à estreia do cineasta americano, Cidadão Kane. Como lá, o menino principal (mas também o padre Dinis, seu tutor) é, de alguma maneira, um órfão; no caso, uma alma nostálgica que chegará à triste constatação da impossibilidade de nos libertarmos de nossos fantasmas e encantamentos da infância.
Parafraseando Serge Daney, a respeito do deleitável A Vila dos Piratas: os mais belos filmes são aqueles que não sabemos ao certo se o vimos ou, na verdade, apenas o sonhamos. É o caso de Mistérios de Lisboa – ao lado de turbilhões como O Navio dos Afogados, O Território, L’éveillé du Pont de d’Alma e tantos outros; muitos, ainda, escondidos como tesouros na colossal e fantástica trajetória deste grande capitão.
Bruno Cursini
Pode-se vivenciar Cosmópolis de distintas maneiras. Encaixar o filme na carreira de Cronenberg, abordagem que a crítica de Sérgio Alpendre nesta revista já adotou; questionar a predominância de espaços fechados; buscar em Cosmópolis o que ele nos oferece para entender o capitalismo pós-industrial, em que virtude e dinheiro exercem uma estranha equivalência.
Outra abordagem possível é a observação de um personagem esvaziado de sentido, que passa o filme inteiro tentando se estimular, fisica e intelectualmente, e o impacto que isso tem na relação espectador-filme.
O dinheiro é um brinquedo. O desabamento do mundo fora da limusine não o sensibiliza. Nem o sexo com duas belas mulheres. Nem a espalhafatosa torta na cara que leva de um manifestante especializado em esculachar figurões.
Apenas dois são os componentes a lembrar que Eric Packer é um organismo vivo, apesar de se comportar como um zumbi: a perspectiva de mais acumulação do capital e a iminência da morte. Quando Juliette Binoche diz que uma peça de Rothko está à venda, ele quer comprar a campela Rothko – e se excita. Não porque são bonitas ou porque é um mecenas: apenas pelo tesão em jogar com o dinheiro, em acumular capital simbólico.
A iminência da morte é outro desses momentos. Packer tem um olhar mais lascivo quando brinca com a arma da sua segurança – com quem acabara de transar – do que no orgasmo em si. A iminência da morte lhe causa um estraho prazer.
Não à toa. Eric Packer é um corpo morto. E assim continuará, seja no mundo dos vivos ou dos mortos, pois a busca pela acumulação é infinita, ilimitada, já que não trabalha com uma ponto final, não se realiza. Ela se retroalimenta, pois um fim em si. É o “automotivmento do capital”, nas palavras de Vladimir Safatle, que tem em figuras como Eric o motor.
Heitor Augusto
3. HABEMUS PAPAM
Após um melodrama impecável (O Quarto do Filho) e a imprecação contra Berlusconi de O Crocodilo, Nanni Moretti observa a religião católica de dentro, numa linha semelhante à que havia explorado em A Missa Acabou. É o Vaticano que o cineasta explora com seu humor e olhar único, atento aos detalhes e às contradições.
Ninguém quer ser papa. Mas acontece que os votos foram em sua maioria na direção do não-candidato interpretado por Michel Piccoli. E não é que com isso Moretti se conecta espiritualmente a Buñuel? Sua intenção é bem menos provocadora que a do mestre espanhol, ou nem é provocadora, uma vez que não há desrespeito algum ao catolicismo, apesar de piadas como a do campeonato de vôlei e dos diálogos sempre entre o jocoso e o perspicaz. A conexão se dá porque Piccoli viveu alguns personagens bizarros da galeria buñueliana, com destaque para o Marquês de Sade de A Via Láctea, e para o habituée do bordel onde trabalhava a bela da tarde, retomado décadas depois por um outro gênio, Manoel de Oliveira. Ou seja, Piccoli como papa não pode dar em nada que não seja questionador.
Além de uma elegante direção, Moretti atua como ator, mais uma vez irretocável como o psicanalista que tenta contornar uma situação inusitada: o sumiço do novo papa.
Sérgio Alpendre
Essential Killing é o filme mais forte de Skolimowski em muito tempo, talvez em todos os tempos. É também um ovni, porque não estamos habituados a ver, em filmes dos últimos dez anos, coisas como um fugitivo e a natureza ao seu redor em longos minutos sem qualquer diálogo, sem explicação para o espectador. É uma opção corajosa acompanhar o prisioneiro afegão que escapa das garras americanas em algum lugar perto da Rússia (pelo menos me pareceu russo a língua falada pelos lenhadores que ele encontra pelo caminho) privando o público de conhecer seus pensamentos, seu passado e seus pecados.
O polonês Skolimowski não suaviza em momento algum a estratégia de sobrevivência desse prisioneiro, mostrando o que ele precisa fazer para não morrer de desnutrição (comer formigas, mamar no seio de uma mulher que no outro seio amamentava seu filho, e outras coisas pouco usuais). Nada disso seria grande coisa sem uma direção segura, que se arrisca bastante com a câmera nervosa e alguns cortes afobados, mas consegue sair ileso de tais armadilhas da moda.
Grande parte do crédito vai para Vincent Gallo, que tem aqui uma de suas melhores atuações. Ele passa o filme inteiro calado, com o olhar desesperado de um fugitivo e a sede de viver estampada no rosto. Quando começa a ter delírios, Skolimowski mostra que sabe filmar como poucos, especialmente na cena dos cachorros. O fim desse personagem é um dos mais poéticos do cinema contemporâneo.
Sérgio Alpendre
5. Holy Motors
No prólogo, temos uma sala de cinema enorme e uma turba adormecida, vendo ou sonhando com o filme de King Vidor, The Crowd. Num espaço anexo, o próprio Carax, desperta do sono, abre uma parede do quarto e adentra ao mundo do cinema. O som do filme remete a uma paisagem marítima e a gaivotas, mas a janela redonda que vemos, não é de um navio e, sim, da mansão de onde surgirá Oscar, menção ao nome real de Carax, Alex Oscar Dupont.
Oscar viverá nove compromissos de um homem de trabalho que dão conta de um estar no mundo, no abismo entre a verdade e o sonho, entre o real e o encenado. O espaço fronteiriço entre tais atos é uma limusine, metáfora para a nave mãe (Melancolia e Cosmópolis), camarim e máquina de deslocamento para o “palco” de cada nova representação.
Ao se travestir de mendiga, viver a mais nojenta das criaturas, o pai em conflito com a filha que busca ser aceita, o assassino de si, entre outros papeis, o que está em jogo é a construção de um mosaico do homem fraturado entre tantas possibilidades de afirmação e representação, nem todas reais, muitas sonhadas ou projetadas, algumas refreadas pelo ego ou pela convenção moral, num mundo no qual todas as “verdades” se encontram igualmente esgarçadas e no qual tudo parece possível de ser vivido. Ainda que vivido pelo cinema, pela possibilidade do consumo, pelo desenvolvimento de todo tipo de máquina.
Holy Motors é um inventário artístico e afetivo do homem pós-moderno – a mulher que se suicida é uma referência a Katya, mulher de Carax, que se suicidou –, inventário poético de um diretor que, como o homem com os macacos na janela, olha para trás e reconstrói tudo que viu. Reconstrução em camadas dado que o vivido perpassa a matéria humana e se forma e se deformando, esvanecendo.
Cesar Zamberlan
6. L'APOLLONIDE
Após uma filmografia que ia do irregular ao francamente ruim, explorando a vulgarização da representação cinematográfica e dialogando, por vezes descaradamente, com o que há de mais renomado no cinema dito autoral (como na utilização de sequências que não necessariamente levavam suas narrativas adiante), Bertrant Bonello realiza, com L’apollonide, seu melhor filme.
É como se o confinamento em um único ambiente – um luxuoso bordel, na virada do século XIX para o XX – e sua bem-sucedida opção em evitar as facilidades típicas aos filmes-painel, conseguissem deixar ilesa sua capacidade de organizar seus elaborados quadros e, também, possibilitassem que suas cenas acumulassem força, uma após outra, até sua conclusão.
Não que uma sensação algo derivativa não venha à mente (além de Flores de Xangai, o tom de mistério opressor, à David Lynch) ou que sua visão entre cortesã e cliente não pareça por vezes esquemática (garotas sofredoras/ homens depravados), mas o fato é que L’apollonide permanece na memória, bem após seu polêmico final – que traz seu drama aos dias de hoje, às ruas de Paris.
Talvez isso deva-se à maestria do diretor em contrapor uma encenação sofisticada com o despojamento de suas atrizes. Ou ao tom onírico do ambiente em desacordo à dureza inerente às vidas destas garotas e às convenções sócio-econômicas que, invariavelmente, adentram e produzem uma inquietação de poder no local. Seja como for, L’apollonide é belíssimo, merecidamente lembrado entre os melhores do ano.
Bruno Cursini
7. UM ALGÚEM APAIXONADO
Após o considerável sucesso de Cópia Fiel, é frustrante a timidez com que Um Alguém Apaixonado passou pelos cinemas. Sim, entendo que não temos Juliette Binoche o protagonizando, tampouco as belas paisagens da Toscana como pano de fundo. No entanto, para mim, o que faz daquele um trabalho menor na filmografia do diretor de Através das Oliveiras e Vida e Nada Mais (E a Vida Continua) – e outras três ou quatro obras-primas, sendo rigoroso – é, aqui, reconfigurado de maneira amplamente superior. No filme anterior, o jogo proposto por Kiarostami necessitava partir de um ponto de ruptura claro. Desde o seu título, passando pelas profissões do casal, pelo assunto no carro durante a viagem e, finalmente, pela confusão da senhora no café onde a inversão (ou melhor, invenção) tem início, tudo devia milimetricamente servir ao impasse da dramaturgia e da representação, à evidência do espectador.
Também de farsas e encenações constitui-se Um Alguém Apaixonado; porém, de maneira mais fugidia e sedutora. Pensemos no fora de campo da exemplar primeira cena; na falta de clareza da natureza do relacionamento da garota com o velho ou, por fim, no teatro mal ajambrado destes para os olhos do namorado da menina. Sem explicitar os seus movimentos, Kiarostami volta a privar o espectador de saber exatamente o que está acontecendo; assim, retornando a confeccionar sua mágica: pegar a singularidade do ser humano e da Natureza, e fazer, de suas particularidades, uma cópia fiel. E sublime.
Bruno Cursini
A volta de Monte Hellman ao cinema depois de vinte anos nos encanta aos poucos, precisa de seguidas revisões para se revelar completamente. Na trama, um filme independente está sendo feito pelo cineasta Mitchell Haven (mesmas iniciais do próprio Hellman).
A intenção, desde muito cedo, é fazer com que a linha que separa a história de Hellman da de Haven seja cada vez mais imperceptível. O tom ora lembra David Lynch, ora lembra Brian De Palma, e não são poucos os cinéfilos que saem decepcionados com o estilo falsamente low-profile de Hellman, que na direção se submete ao estilo de seu protagonista, Haven.
O espelhamento entre os dois cineastas é evidente. Haven atua num ritmo próximo ao dos filmes de Hellman: contemplativo, cheio de tempos mortos e não ditos. Como todos os protagonistas da carreira de Hellman, Haven parece um morto-vivo que se alimenta de película, e marcha solenemente rumo a um desfecho infeliz.
Caminho Para o Nada é um nome ideal para um filme de Hellman. Mais uma vez temos seus semizumbis lutando contra uma condição da qual não conseguem sair. Mas desta vez o alvo é mais evidente do que nunca: Hollywood. E por consequência, todo o mundo atual do espetáculo. Trata-se de um dos filmes mais críticos do cinema recente.
Sérgio Alpendre
Ao herói genuíno não é permitido desfrutar do clichê grua mirando o horizonte, que representa o “e viveram felizes para sempre” das fábulas infantis. No máximo, pode viver a felicidade efêmera que adia o inevitável destino: a renúncia da vontade própria em prol do outro – em geral, um amor. Pois sua função no mundo é salvar alguém antes de voltar às sombras de onde veio.
Drive não foge à tradição. O que vemos no filme de Nicolas Winding Refn não é a jornada do herói, mas um intervalo de sua vida, quando se torna protagonista do destino de Irene, sua paixão por acidente. O herói não tem o direito de desfrutar da normalidade: ele existe para reestabelecer a ordem dos outros, não a sua própria.
O motorista sem nome de Drive é um Homem-Morcego sem as asas dentro de um filme que mimetiza uma estética oitentista. Tanto que a canção dos créditos do filme de Refn, A Real Hero, traz os definidores versos “real human being and a real hero”.
Ryan Gosling passa quase todo o filme tentando evitar a entrada no caos. Quando ela acontece, ele sabe, o caminho é sem volta. Drive abandona a sutilidade da relação com o tempo, o deslize suave da câmera no espaço, e se devota aos ecos de cinema que o rondam, especialmente Sob o Domínio do Mal, de Sam Peckinpah. A construção de atmosfera em cenas como a do cala boca no bar dão vez à sanguinolência da cena do hotel.
O herói encontra seu inevitável destino. Tornou um ínfimo pedaço do mundo ao seu redor menos pior. O preço é alto: a felicidade será sempre uma miragem.
Heitor Augusto
Existe uma mudança significativa entre Il Dono, primeiro longa de Michelangelo Frammartino, não exibido comercialmente no Brasil, e o segundo, o premiado, Quatro Voltas. Se no primeiro, o diretor cria personagens e histórias sediadas na paisagem da Calábria, num registro mais ficcional, ainda que a natureza tenha força acentuada; no segundo, o elemento humano está praticamente colado à paisagem e a encenação praticamente inexiste, fazendo com que o registro seja muito mais documental que qualquer outra coisa.
O diretor oferece ao espectador, e aí reside a beleza do filme, uma imersão na paisagem e no dia a dia de um pequeno vilarejo calabrês. Vemos e ouvimos – a construção da paisagem sonora é um achado do filme -, o vagar tranquilo do tempo com o barulho do vento nas árvores, contemplamos a paisagem, montamos na cabeça a geografia do lugar, desenhamos a cidade no topo do morro, vemos o trabalho na Igreja e as partículas de poeira que sobem quando chão é varrido, somos convidados a observar o trabalho do pastor no trato com as ovelhas que berram o tempo todo, acompanhamos o inteligente e vigilante cão que segue o pastor, acompanhamos a procissão da paixão de Cristo e uma série de acontecimentos que foge a uma lógica de causa e consequência, ou que seja imposta pelo filme; o que temos é a vida transcorrendo com seus ciclos, sem interferência externa.
A fumaça do forno abre e fecha o filme, dando ao trabalho de Frammartino seu caráter circular no qual a morte, do pastor ou da árvore, e a vida, da ovelhinha que nasce ou da lenha que queima gerando carvão, se completam. Os fades entre um momento e outro do filme, as tais quatro voltas, tem caráter elíptico, o tempo que se abre e se fecha para novamente ser reinaugurado: primeiro com o pastor e sua bela morte, anunciada pelo cão – que cria um estratagema para alertar os moradores do ocorrido, num dos mais belos momentos do cinema recente -; depois pelo ciclo da ovelhinha que nasce e procura seu lugar no rebanho e na paisagem; depois para mostrar o ciclo da madeira até virar carvão nos fornos.
Temos, portanto, um leve olhar para a natureza. Para a natureza como um corpo em movimento, como passagem, sem evocações metafísicas, místicas ou espirituais; a vida queimando apenas.
Cesar Zamberlan
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