Ano VII

Diário – Parte 1: Provisório e Amianto

segunda-feira jan 21, 2013

Diário de Tiradentes – Parte 1 – Provisório e Amianto: o azedo e a doce

Meu primeiro dia em Tiradentes teve dois longas já comentados aqui na Interlúdio: A Memória Que Me Contam, de Lúcia Murat, e Eles Voltam, de Marcelo Lordello. Ambos são bem problemáticos, embora de maneira diferente, praticamente o avesso. A Memória Que Me Contam é composto de uma verborragia bem tola, que parece panfleto comunista burguês dos anos 60, e o artifício strindberguiano do diálogo entre presente e passado, vivos e semimorta, é pífio. Mas é razoavelmente bem dirigido, o que o salva da tragédia completa. Eles Voltam, segundo longa de Lordello, após Vigias, começa bem quando está na estrada, influenciada, como anunciou o diretor, pelo rock progressivo do Clube da Esquina. Quando sai da estrada e passa a almejar uma certa narrativa o filme se estrepa e desce a ladeira. Lordello é inteligente e sensível. Seu filme é pessoal, e seu discurso é franco. Mas isso não basta para fazer um bom filme. Infelizmente, a beleza de seu belo curta Número 27 ainda não foi confirmada pelos seus longas.

Entremos no segundo dia. A Balada do Provisório, de Felipe David Rodrigues, alterna bons e maus momentos de mise en scène, e é mais um filme a cair depois de uma certa duração (uma constante perigosa no cinema autoral brasileiro). Acompanhamos uma hora e meia na vida de um malandro escroto, cuja meta é sacanear as pessoas. Acontece que esse escroto é engraçado em alguns momentos, e quase conquista nossa simpatia. Felizmente, o diretor nos permite lidar com sua personalidade, e com isso o filme não nos engana, mas apresenta essa clara limitação. A vontade é de entrar ali e dar um belo pontapé nesse tal de Provisório.

Doce Amianto, de Guto Parente e Uirá dos Reis, é o primeiro bom filme visto nesta edição de Tiradentes. O filme tem vontade de cinema, uma vontade que transparece a cada artifício, cada plano, e até na picaretagem. É composto de um curta dentro de um média. Picaretagem pura. A amarra é frágil, mas surpreendentemente funciona. Existem, sim, alguns planos toscos, sobretudo closes e contra-plongées (o cinema que chega ou aspira a Tiradentes, em boa parte, tem mania de plongées e contra-plongées feios). Mas o tesão pelo que é filmado, pela composição de cada plano médio ou aberto, e a maneira feliz como lida com as inúmeras referências (entre outras: Carmelo Bene, Derek Jarman, João Pedro Rodrigues – como bem notou o Heitor Augusto – e Fassbinder – no jogo com espelhos e na crueza das relações) compensam os deslizes, que se tornam irrisórios. Não que o filme seja uma versão Alumbramento de Num Ano Com Treze Luas, ou o Salomé beniano do século 21. Mas cinema com essa força é raro no mundo atual. Doce Amianto é provavelmente o grande filme da produtora cearense até aqui. Merece boa parte dos holofotes que colocam O Som ao Redor na ribalta dos elogios.

Sérgio Alpendre

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