HITCH – ANOS 50
Pavor nos Bastidores
Stagefright, 1950
Em geral, os filmes de Hitchcock (digamos: Disque M para Matar ou O Terceiro Tiro) invadem uma situação, dissecam todos os vestígios até o esgotamento, para no fim serem surpreendidos por um detalhe irrisório que torna toda a análise uma perda de tempo. Diante da prova, o restante do mundo se desmorona e torna-se estúpido e banal. Nesse sentido, são filmes aprisionados pela lógica, pelo teorema, geométricos na disposição do quebra-cabeça e cujo ritmo é submetido ao compasso e à síncope.
Não é assim com Pavor nos Bastidores, que se prende aos gestos de uma protagonista que está totalmente desvinculada do fato inicial (um assassinato, é claro), permitindo ao filme a uma distensão do tempo (não mais sincopado) e às pequenas intrigas específicas da qual a protagonista e sua inocência se inscrevem. Como será então a revelação da verdade, da prova final? Não pela lógica e nem pelo vestígio: vem pela catarse, pelo súbito desespero, pela volatilidade da palavra, pela confissão direta.
Trata-se de um desfecho estranho, em que o foco dramático muda muito subitamente e logo é descartado. Não há a ironia típica de Hitchcock, nem tampouco a tragédia desta confissão. É como se fosse verdade “demais”, vinda de um ponto de vista intruso, que não fazia parte da narrativa, e que cuja presença não é bem-vinda. Hitchcock não coloca esta reviravolta no interior de sua história, na própria lógica de adesão do espectador – ao contrário, Pavor nos Bastidores está mais para um blefe.
João Gabriel Paixão
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Pacto Sinistro
Strangers on a Train, 1951
Com Pacto Sinistro, Hitchcock inicia uma fase de sua carreira que duraria até 1963 e que foi uma das mais gloriosas para um cineasta em qualquer tempo. Foram doze longas, dentre os quais temos seis obras-primas indiscutíveis. Esta foi a primeira delas.
O senso de grandiosidade do filme já se define desde os primeiros planos, com os pés caminhando para a estação de trem. Temos desde então um filme imerso na noção do duplo. Às vezes duplos antagônicos, outras vezes duplos complementares. Nos universos aparentemente estranhos entre si onde habitam Guy (Farley Granger) e Bruno (Robert Walker), trajetórias se interceptam e diferenças entre os protagonistas se transfiguram em similaridades.
Bruno, o mais carismático e descontrolado, ofusca o discreto e reprimido Guy, mas, não fosse este último deveras inseguro, suas atitudes se demonstrariam tão assustadoras como as de seu oponente. Guy insiste em não ver o mundo através dos óculos que Bruno lhe oferece, metáfora tão bem exposta pelo mestre Hitch ao mostrar o assassinato da ex-mulher através das lentes quebradas dos óculos largados ao chão. Até a sequência final, toda a trajetória de Guy se dá em direção à recusa e tentativa de devolução desses óculos ao nefasto Bruno. Ilusão achar que a morte desse último traria a solução para os problemas de Guy; tarde demais, este já estaria então consciente de sua miopia para enxergar o seu próprio lado sombrio.
Enquanto isso, Hitchcock abusa do direito de nos encantar, levando aos extremos a simbiose entre o lúdico e o macabro, seja num jogo de tênis que manipula sem constrangimento o tempo narrativo, seja desaguando num passeio de carrossel que nos remete à iminência da morte em todas as instâncias.
Gilberto Silva Jr.
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Tortura do Silêncio
I Confess, 1953
Hitchcock lamentava que A Tortura do Silêncio não seria bom o bastante porque lhe faltava humor, característica recorrente na obra do mestre . Talvez frente a Janela Indiscreta e Frenesi, Tortura (e a maior parte dos filmes já feitos) realmente não seja bom o bastante. Entretanto a falta de humor não é um problema, é antes um tom necessário: não há como um filme sobre um sacrifício voluntário ser engraçado, ainda que a aparente tolice do compromisso religioso (com Deus) e moral (com os homens) do padre Logan (Montegomery Clift) tenha algo de quase patético, portanto quase cômico.
Ora, a fidelidade de padre Logan ao segredo da confissão é sua via crucis, e por isso mesmo o seu sacrifício soa estúpido, já que ele tem a chave para a resolução de um assassinato, mas prefere ir preso a entregar o assassino. Hitchcock opõe a “loucura da cruz” a “sensatez do mundo”, como diria São Paulo. E o que seria essa sensatez do mundo que Hitch deixa nua em toda a sua mediocridade? A lógica superficial do juízo a partir de uma imagem contraditória. O juízo, claro, é do inspetor de polícia que é ao mesmo tempo algoz do padre Logan e vítima da obviedade já que boa parte dos indícios apontava para o padre como principal suspeito e, para o policial e a multidão, o culpado. Portanto, o equívoco. E, como é comum em Hitchcock, o equívoco é não só a face da mediocridade da percepção e do juízo, mas também veículo do mal (e o seu triunfo), pois é a mentira que se faz passar como uma verdade fácil, evidente e satisfatória.
Entre os filmes do diretor esse é o que melhor trabalha o sacrifício como ritual público, o protocolo social como a expressão acabada do equívoco. Se cada cena é um crescente de agonia nos gestos (respirações represadas, palavras travadas, fôlegos engolidos, olhos arregalados), temos em A Tortura do Silêncio a imagem das implicações do erro primordial: o pecado. Para Hitchcock o pecado é sempre um ato pessoal de ressonâncias coletivas, seja na opinião pública que quer a punição do culpado, seja na expiação desse erro por meio de um inocente. No fim das contas é a desordem do mundo.
Francis Vogner dos Reis
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Disque M para Matar
Dial M for Murder, 1954
Ray Milland funciona como uma espécie de guia nesta narrativa minimalista onde temos a impressão de deslizar entre as imagens e as falas. Nada dos planos-sequências digressivos de Festim Diabólico aqui: apenas a perfeição cênica, a precisão da câmera, o charme desaparecido dos atores, o plano de Grace Kelly empunhando a tesoura deitada de costas para a câmera num dos ângulos mais incríveis do cinema; o crime perfeito. Hitchcock se deixa guiar pelo texto original da peça e impõe a seu estilo um aspecto mais rarefeito e conciso, o que gera um efeito cênico bastante especial: os objetos crescem em suas dimensões (as luvas, a chave, a tesoura, o telefone, a bengala) num teatro impressionante em que somos empurrados rumo a uma compreensão obsessiva da posição de cada um desses elementos dentro da mobília cênica.
Primeiro plano do filme: vemos um policial vigilante na calçada. A câmera faz um travelling em direção à fachada de uma casa deixando o policial para trás. Corte para um plano emoldurando um casal se beijando diante da mesa do café da manhã (nova fachada a ser destruída pelo filme). A combinação entre o travelling, o policial e a fachada compõem um esboço tipicamente hitchcockiano que nos indica, primeiramente, um desencontro de pontos-de-vista, no caso, do policial e da câmera (o olhar voyeurista da câmera escava coisas que escapam aos olhos da lei). Ao mesmo tempo, o travelling é a indicação precisa de que nos instalamos naquele espaço para praticamente nunca mais sair: se há um ponto-de-vista no filme, é o ponto-de-vista do espaço, das paredes, do cenário, das evidências do local. Guiados por Milland, que atravessa o filme como um instrumento de sedução, nos tornamos presas fáceis de um suspense tão mais intenso quanto mais basal.
Calac Nogueira
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Janela Indiscreta
Rear Window, 1954
É até constrangedor tentar escrever algo sobre Janela Indiscreta. Muito já se escreveu, muito já se falou, muito já se pensou sobre este que é um dos filmes mais famosos do cinema e também um dos maiores. A impressão é que nada de relevante pode ser dito. Nem atualizar a discussão é possível, porque isso o próprio cinema (Dublê de Corpo, Não Amarás) fez melhor. Por isso escrever algo sobre o filme, tentar desvendar alguns de seus segredos, implicá-lo teoricamente na história das formas artísticas pode ser chover no molhado para quem está minimamente acostumado com o que se produziu de reflexão sobre o cinema. A história do fotógrafo (James Stewart) com a perna imobilizada que observa de sua janela a vida dos vizinhos e acredita que o homem que mora na sua frente matou a esposa, é um dos momentos em que o cinema propôs pensar seu próprio mistério e fascinação e refletir também seu modo de forjar o mundo por meio de uma técnica, de expressar o seu espírito por intermédio de procedimentos formais específicos. Não é exagero dizer, portanto, que Janela Indiscreta é a síntese das potencialidades e dos limites do cinema e também um pequeno e decisivo tratado dialético do cinema como arte e espetáculo, fruição e reflexão, experimentação e tradição. Se talvez pudesse se salvar um só filme para mostrar às futuras gerações o que foi o cinema em toda a sua dimensão, este filme só poderia ser Janela Indiscreta.
O que resta a nós, espectadores de 2011, é a experiência do filme, uma experiência que mesmo que seja calcada (mediada e esgotada) em amplo repertório teórico, mesmo que já saibamos de cor e salteado os fatos que compõem sua trama, é uma coisa sempre vigorosa, que sempre “funciona” e fascina, mesmo que já tenhamos visto tudo cinqüenta vezes. Por isso, ser cúmplice de James Stewart, torcer para que Grace Kelly não seja pega e prender a respiração com o olhar frontal do assassino não pertencem ao passado do cinema, mas é uma coisa sempre nova, uma criação tão humana, de sentimentos tão humanos, de implicações tão humanas, que sempre estará à frente de qualquer filme que só responda – contigencialmente – ao seu tempo histórico. Se o cinema tem uma vocação, foi aqui que ele a encontrou.
Francis Vogner dos Reis
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Ladrão de Casaca
To Catch a Thief, 1955
Já se falou tanto das imagens de Hitchcock que, por uma vez, pode-se começar pelos seus diálogos:
- Só me arrependo de uma coisa. De ter-lhe ensinado inglês.
- Você só me ensinou os substantivos. Os adjetivos, eu aprendi sozinha.
- Gato é um substantivo.
- Não do jeito que você usa.
A conversa é entre John Robbie (Cary Grant), o “Gato”, famoso ex-ladrão de jóias, e Danielle, a jovem que ele viu crescer, filha de um de seus ex-companheiros durante a Resistência (o filme se passa no sul da França).
O trecho poderia passar despercebido em meio a tantos outros momentos magníficos. Mas ele é essencial pelo que revela do cinema de Hitchcock. Afinal, se todo o filme culmina numa longa sequência em um baile à fantasia, desde as primeiras imagens está estabelecido o princípio que move o filme: o mundo como um jogo de máscaras. Ladrão de Casaca é, portanto, uma variação sobre os temas favoritos do cada vez melhor Hitch: o que é real e o que é mera aparência – ou, em outras palavras, o substantivo e o adjetivo.
Por algum motivo, o filme faz lembrar Howard Hawks. Pode ser pela presença de Cary Grant (cinco obras-primas com o diretor de Levada da Breca). Pode ser por um gesto muito típico dos filmes de Hawks, que é iniciar os filmes por uma anomalia, uma “aberração”: aqui, a série de assaltos, tendo como primeira imagem o grito de uma das vítimas (com o rosto coberto de cremes e uma touca na cabeça: humor fino típico de Hitchcock). Ou ainda pela enorme safadeza das situações, ou uma certa ligeireza muito agradável mas cujas virtudes nem todos conseguem ver.
Mas Ladrão de Casaca é hawksiano sobretudo porque em cada imagem sua, “o que é, é”. Pois Hitch não demonstra, ele simplesmente mostra à evidência (como se, para provar o movimento, se levantasse e começasse a andar) as coisas do mundo.
E, no entanto, estamos, de cabo a rabo, diante de um filme de Hitchcock. Um dos maiores, diga-se. Basta ver a imagem de Cary Grant, no alto de um telhado, iluminado à contra-luz e filmado de cima para baixo: luz e trevas, ver e ser visto (o olhar que cega), ser e parecer, tudo o que é mais hitchcockiano, está ali.
Juliano Tosi
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O Terceiro Tiro
The Trouble with Harry, 1955
Um vivo technicolor inicia este O Terceiro Tiro, o mais buñueliano dos filmes de Hitchcock: em uma luminosa manhã outonal numa comunidade na Nova Inglaterra, uma igreja badala o seu sino. Nesta paisagem, um garoto com uma espingarda de plástico azul. Para quebrar o idílio, três tiros agudos e a sentença: “Sei lidar com tipos como você”.
Ao melhor estilo Papa-Léguas, criada a expectativa, segue-se a agradável frustração: ao invés do pressuposto assassinato, uma desastrada tentativa de caça, por um simpático velhinho falastrão… Opa, será mesmo? Segundos depois, um corpo, o tal Harry do título original. A preocupação imediata do velho (de fato, sua única e exclusiva preocupação) é enterrar logo o “seu corpo” evitando, assim, maiores problemas com as autoridades. No entanto, o esmorecido algoz acaba cochilando, deixando sua vítima exposta ao sol, pacificamente descansando.
Só então entra o personagem de John Forsythe, aquele que normalmente seria o herói do filme. Mas estamos diante a um Hitchcock atípico: entre seus filmes, esse é o que mais se apóia nos diálogos e no desempenho de seu elenco. E aqui ninguém decepciona: da estreante Shirley MacLaine ao veterano Edmund Gwenn, o romanesco quarteto que compõem os dois pares do enredo formam um grupo notável.
Na ausência de uma trama hitchcockiana, todos deste conjunto transferem não “a culpa”, sentimento este estranho ao filme, mas o materialíssimo medo de uma acusação formal: a polícia (eternamente cega pelas evidências) é, em O Terceiro Tiro a única vilã. Subvertendo o whodunit, o dilema passa ao largo do fato de “quem realmente” fora o culpado pelo crime, e se ocupa de “quem parecerá” culpado por ele. Na verdade, diz seu desenlace, tudo que importa é que “o problema com Harry” acabou.
Bruno Cursini
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O Homem que Sabia Demais
The Man Who Knew Too Much, 1956
Falsamente, o título de O Homem que Sabia Demais sugere uma história cujo personagem masculino seria o fator de desequilíbrio. Engano, pois quem mais interessa é uma mulher que atende pelo nome de Josephine, que aos poucos salta de mera esposa para se tornar peça-chave no mistério. Josephine cresce tão intensamente quanto o próprio filme.
E o que a diferencia de uma mulher comum? Sua voz, que ficou guardada por anos quando o casamento surgiu como um concorrente aos palcos. Uma mulher que não desgruda do rosto um sorriso, mas que por trás dele deixa transparecer uma frustração. Na volta a Londres e ao reencontrar inesperadamente fãs no aeroporto, ela para por uma fração de segundos para relembrar como era a fama; no restaurante, um diálogo bruscamente interrompido levanta dúvidas. Sim, ela tem saudades.
Justamente pela voz de Doris Day que Josephine ganha identidade própria, seja com consciência – como na sequência final na embaixada – ou num rompante de desespero, como no teatro durante a execução da cantata “Storm Clouds”. Justamente seu dom mais precioso que ficou escondido por conta do acordo tácito do casamento explode no momento certo.
Quando Josephine toma as rédeas, transforma o filme em grandioso. Ao tê-la mais em cena, a câmera abandona a elegância dos movimentos da primeira parte no Marrocos e, a partir da sequência da ópera, manipula o tempo à exaustão, dilatando sua duração para explodir em dois encerramentos catárticos. Nesse momento, O Homem que Sabia Demais transforma-se num grande filme.
Heitor Augusto
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O Homem Errado
The Wrong Man, 1956
Dizem que O Homem Errado é um filme à parte, um Hitchcock diferente, quando me parece, ao contrário, um de seus trabalhos mais límpidos. É sua história de um olho (ou antes, de um par de olhos, os de Henri Fonda), e o que poderia ser mais hitchockiano? De tal modo que poderíamos, facilmente, trocar uma sinopse pela simples descrição dos olhos de Fonda a cada cena.
Por exemplo: o momento da prisão de Fonda/Balestrero, à porta de sua casa. Aquele homem de grandes olhos estóicos, o pai de família que carrega em si uma tristeza ainda não definida, é agora também um homem moralmente condenado. E Hitchcock, com alguns recursos muito simples, nos dá toda a medida do calvário a seguir. Ladeado por dois policiais no banco de trás da viatura, o olhar perdido de Fonda (e quem disse que Hitch não ligava para os atores?) olha para um lado: sua visão é bloqueada por uma massa, a sombra de um policial. Do outro lado, ainda uma treva assustadora o impede de ver o mundo a seu redor. Ele tenta, por fim, olhar para frente, mas é interrompido pelos olhos vigilantes do motorista refletidos no retrovisor. Nestes três ou quatro planos, pouco virtuosos, está definido todo o calvário de Fonda, pois para Hitchcock ver = ser (ou ainda, para aqueles que ainda o acreditam em mero formalista, o cinema = vida).
O que veremos dali por diante é, mais do que a destruição de um homem, o esvaziamento de seu olhar (o moral e o físico). Como bom católico, sua atitude será “a mais arrasada, a mais humilde” (Truffaut): como só lhe restassem forças para olhar e suportar sua dor.
Há ainda tempo para dois ou três momentos para qualquer antologia hitchockiano: por exemplo, a imagem de Fonda refletida no espelho partido (como num Picasso, diria Hitch), após uma briga com a esposa, seus olhos incrédulos.
Mas não há como ignorar a mais bela fusão já vista. Fonda/Balestrero olha para um quadro de Cristo e pede ajuda (sua reza é com os olhos mais suplicantes de todos). Para o católico Hitchcock, rezar é uma forma de agir: assim, ele será atendido. A imagem do rosto de Fonda, lentamente, irá fundir-se com um plano de rua, que será preenchido pelo rosto de um outro homem, e traços muito parecidos e, ao mesmo tempo, em tudo diferente do rosto “triste e claro à transparência” (ainda Truffaut) que víramos durante 90 minutos. Balestrero estará, enfim, livre de seu duplo maligno (o verdadeiro ladrão) – e a nós restará a lição típica de Hitch: é preciso duvidar das aparências.
Juliano Tosi
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Um Corpo que Cai
Vertigo, 1958
Um filme sobre um detetive que se apaixona por uma loira que não usa sutiã. É mais ou menos assim que Godard resume o enredo de Um Corpo que Cai. A partir disso, Hitchcock monta um filme todo fundado no olhar. Como Janela Indiscreta, Um Corpo que Cai é centrado sobre uma questão de ponto de vista e interroga o componente principal da mise-en-scène hitchcockiana (a condução do olhar do espectador) através dos trajetos de Scottie (James Stewart), que na segunda parte do filme quer tomar possessão do corpo de Judy (Kim Novak) para moldá-lo, modelá-lo, transformá-lo no objeto ideal de seu desejo. Ele faz Judy reencarnar Madeleine, a personagem que o obcecou na primeira parte da trama, como forma de desvendar o mistério e se livrar da culpa pela morte dela. Mas Scottie falha miseravelmente nessa tentativa de exorcismo – sua mise-en-scène literalmente cai por terra.
O filme tem uma aura de sonho e fantasmagoria, com a morte se impondo de modo inevitável. Na cena em que Judy reaparece num quarto de hotel vestida como Madeleine, o ambiente está inundado por uma luz verde, que, de acordo com uma tradição do teatro vitoriano, é a cor da morte. Madeleine ressurge dentre os mortos, para citar o título (“D’entre les Morts”) do romance de Pierre Boileau e Thomas Narcejac que deu origem ao roteiro.
Um Corpo que Cai é a história de uma possessão demoníaca. A personagem de Kim Novak está possuída pelo demônio da forma, perfeitamente ilustrado pelo retrato de Carlotta exposto no museu de São Francisco. Carlotta é a face sedutora e enigmática do espírito tenebroso que empurra Madeleine/Judy para o suicídio, isto é, que a atrai para o mundo dos mortos.
Um Corpo que Cai é também uma autêntica história de amor platônico. Scottie, ao repaginar Judy tendo em mente a imagem de Madeleine, nada mais faz além de esculpir a realidade material para que ela se pareça com a Ideia. O mundo externo é submetido à esfera do desejo. Mais que qualquer outro filme de Hitchcock, Vertigo parece guiado por uma imagem mental que constitui a figura matricial do filme.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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Intriga Internacional
North by Northwest, 1959
Qual a medida de um homem? Esta pergunta vem bem a calhar a respeito de Intriga Internacional – pois o próprio Hitchcock irá questionarmos várias vezes durante o filme. Para ele, o homem é um ser que se apequenou.
Escolha-se um homem, um habitante médio de uma metrópole. Por exemplo, Roger Thornhill, bem sucedido executivo, o típico homem que parece usufruir o melhor da modernidade: dinheiro, conforto, agitação, controle do mundo. Como bom publicitário, criou para si uma bela e chamativa embalagem que é pura mentira, ilusão de vida. Já na primeira cena, ele se movimenta com desenvoltura, fala bastante, parece não se ater por nada – enfim, alguém diria que parece saído de uma propaganda de celular. Como ele é também Cary Grant (cada vez mais meu ator favorito), diríamos que mais parece saído de uma paródia desse comercial.
Sob a capa de plenitude, ele é um ser apagado (sem luz, para usar uma imagem mística próxima do catolicismo de Hitchcock). Alheio a si mesmo, ele também ignora o mundo ao seu redor. Sua aparente desenvoltura não define segurança de si, mas uma simples ignorância das coisas: mais do que um criador (e a metáfora religiosa se impõe novamente) que acredita ser, ele é mera presa de forças que desconhece.
Ele flerta – perigosamente, veremos – com o vazio: é como se sua vida não fosse de fato sua. Daí a tornar-se um dos homens errados de Hitchcock é um passo: uma identidade fraca, em crise, é uma identidade que pode ser trocada. E então teremos toda a intriga de espionagem, puro MacGuffin (o pretexto hitchcockiano) para o que de fato importa: uma verdadeira aventura, isto é, um movimento de busca e aprendizado. Pois Intriga é justamente a história de, como escreveu Raymond Bellour, uma “provação que conduz o herói de um enigma a sua resolução, do erro ao reconhecimento”.
Intriga Internacional poderia ser definido como uma espécie de refilmagem de O Incrível Homem que Encolheu – as imagens em que as proporções são mostradas são diversas: nenhuma poderia ser tão estranha e tão marcante quanto o plano que mostra um ínfimo Thornhill fugindo do prédio da ONU. Ao percorrer um trajeto tortuoso (north by northwest), ele cumprirá sua iniciação -e irá tornar-se um homem à altura de si mesmo, isto é, à altura de seus atos.
Intriga Internacional é o mais ligeiro (poucos são tão agradáveis) e ao mesmo tempo o mais profundo dos filmes de Hitchcock, logo é o mais perfeito, o maior de todos.
Juliano Tosi
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