Ano VII

Terror incidental?

domingo jan 13, 2013

Terror incidental?

Por Laura Canepa

Talvez este artigo esteja ainda imaturo, mas a enxurrada de leituras depois do lançamento de O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, tornou inevitável que eu levasse adiante um palpite dado aqui na Interlúdio, algumas semanas atrás, e que diz respeito não apenas a esse filme, mas também a Trabalhar cansa, de Juliana Rojas e Marco Dutra, e a Os inquilinos, de Sergio Bianchi.

Basicamente, trata-se do seguinte: parece-me que a herança da escravidão nas relações sociais e de trabalho, tratada ao longo da história do cinema brasileiro em várias chaves diferentes (irônica, melodramática, revolucionária, policialesca etc) pode estar começando a ser abordada de um novo ponto de vista, que é o do terror. Obviamente, não do terror sobrenatural ou “de gênero”, mas do terror entendido como a representação daquilo que sentimos diante da ameaça iminente de uma explosão irracional ou descontrolada de violência.

O fato é que, diante desses filmes, e ainda que haja neles poucas cenas explicitamente violentas, o espectador se identifica com a percepção dos personagens de que a qualquer momento algo terrível pode acontecer – e esse compartilhamento da tensão diante da ameaça violenta é uma das características que mais interessam àqueles que se deleitam com histórias de terror.

Mas “algo terrível” pode acontecer nesses filmes não por estarmos diante de forças sobrenaturais ou de personagens simplesmente insanos – como é típico em filmes do gênero – , e sim em função de mazelas atávicas e nunca resolvidas da sociedade brasileira. É nesse ponto que os três filmes, juntos, parecem adotar uma visão diferente não apenas dessas mazelas brasileiras, mas, quem sabe, do próprio gênero.

Em Os Inquilinos, uma família de classe trabalhadora paulistana que vive na última casa de uma rua ao lado de uma favela (à beira, portanto, da pobreza), recebe novos vizinhos muito suspeitos. A impotência do pai da família diante da ameaça trazida por eles, e também o interesse de sua esposa e dos filhos pelo que se passa entre os três jovens rapazes, é reforçada pela proximidade quase promiscua das casas. Um crime brutal acabará deixando as coisas mais claras sobre as intenções dos vizinhos, mas não melhores.

Já em Trabalhar Cansa, um casal de classe média vê-se às voltas com o desemprego do marido e com o empreendedorismo atrapalhado da esposa, que decide alugar um mercadinho. Enquanto a renda da família definha, acompanhamos suas dificuldades para manter a escola particular da filha e a empregada da casa (obrigada a atuar na informalidade) enquanto um vazamento no mercadinho e as suspeitas sobre funcionários desviando produtos deixam tudo insuportavelmente tenso.

Por sua vez, em O Som ao Redor, temos um amplo panorama das classes alta, média e baixa num quarteirão da praia de Boa Viagem, em Recife, no qual um grupo de seguranças particulares vem oferecer seus serviços. Divididos entre o medo constante da violência urbana e o medo dos próprios seguranças, moradores e seus empregados tentam levar suas vidas cheias de pequenas tensões, à beira do mar impenetrável pela ameaça de tubarões na costa da cidade.

Se em nenhum desses filmes temos histórias de gênero terror, algumas pistas, umas mais e outras menos óbvias, deixadas aqui e ali, nos ajudam a pensar em termos de um diálogo com o gênero, o que talvez ajude a explicar o estranhamento causado por esses filmes, que é incomum para o tipo de narrativa que apresentam.  

No filme de Rojas e Dutra, o vazamento do mercadinho é causado por pela carcaça de um monstro emparedada nos fundos do estabelecimento, que contamina não apenas o espaço, mas também a sensibilidade dos proprietários. O fato deles decidirem, sem maiores explicações, enterrá-lo e não mais tocar no assunto, só reforça a ideia da carcaça como algo que eles desejam esconder de si mesmos – e eu, aqui, “palpito” que possa tratar-se de uma espécie de metáfora do regime de escravidão, ao qual eles de alguma maneira dão continuidade no modo como se beneficiam da desigualdade social, que tentam preservar a qualquer custo para manter seus privilégios.

No filme de Bianchi, o interesse do marido pelo assassinato ocorrido na casa vizinha ganha ares surreais quando, ao visitar o quarto ensanguentado, à noite, ele se depara com a própria esposa  espiando seus passos da janela de casa, numa espécie de comunhão diabólica entre o casal. Esse é um momento verdadeiramente perturbador do filme, que explora o potencial de violência presente em todo o ambiente de insegurança e pobreza em que se passa a história, e que impede o espectador de interpretar o que vê apenas como um drama familiar de denúncia social, pois trata-se de uma operação bem mais ambígua.

Já Kleber Mendonça Filho espalha suas pistas em vários momentos, como na cachoeira da fazenda de engenho que derrama sangue, ou na escola “João Carpinteiro”, que faz referência ao mestre do horror John Carpenter. Mas o sobrenatural se avizinha principalmente na “aparição” recorrente de um menino de rua, negro, descalço e vestindo apenas uma bermuda branca, que se esgueira pelas árvores e pelas casas sem ter contato com os outros personagens. Mesmo não sendo propriamente um fantasma, pois parece ter existência concreta, essa figura que circula pelo filme e pelas cidades brasileiras há séculos é tratada com a mesma invisibilidade e com o mesmo caráter alienado da realidade de um fantasma. Ele pode ter doze ou duzentos anos, não importa. Essa impressão é reforçada pela encenação de sua presença, que em alguns momentos – por vezes oníricos, por vezes não –, se parece com uma assombração típica de um filme de terror.

Enfim, como avisei no começo deste texto, não se trata ainda de uma proposta concluída, mas apenas de sugerir que O som ao redor, Trabalhar cansa e Os inquilinos trazem abordagens novas tanto de questões urgentes da sociedade brasileira quanto de um gênero que talvez tenha encontrado um espaço inesperado para reemergir no cinema brasileiro – seguindo, com isso, a trilha de obras de diretores contemporâneos como Michael Haneke e David Lynch, por exemplo, que também, frequentemente, se servem do terror para construir filmes que não se sujeitam a essa classificação.

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