O Som ao Redor – Texto 2
O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho
O Som ao Redor chega aos cinemas acompanhado de um merecido rosário de adjetivos acumulados em sua trajetória por festivais em 2012 e pela presença em lista estrangeiras de melhores do ano, como a do The New York Times. A ausência de distância histórica recomenda uma moderação nas frases de efeito ao escrever sobre o filme. Mas é inegável que lá dentro mora uma sensação de que estamos presenciando um capítulo paradigmático da filmografia brasileira.
O Som ao Redor é disparado o que consegue, em tempos recentes, apresentar uma precisão cinematográfica a ponto de nos faz sentir o gozo de presenciar o Belo. De quebra, radiografar sintomas do Brasil pós-Lula. Possivelmente o longa de Kleber Mendonça Filho permanecerá no imaginário tal como Terra Estrangeira nos anos 1990 e Cidade de Deus nos anos 2000 – só que com mais merecimento dada sua superior qualidade em relação ao trabalho de Daniela Thomas, Walter Salles e Fernando Meirelles.
Não é surpresa O Som ao Redor dizer tanto, e tão bem, sobre muita coisa. Afinal, Mendonça Filho é o que de mais sólido e interessante aconteceu na cena do curta-metragem na última década [ler texto “Curta-metragem, um balanço”, publicado no Dossiê Brasil 1992:2012 nesta revista]. Seu primeiro longa de ficção (já havia dirigido o documentário Crítico) nada mais é do que um amadurecimento narrativo que expande questões postas à prova nos curtas.
Em O Som ao Redor, a espinha dorsal que une as diferentes histórias do cotidiano de uma rua de classe média no Recife é o alastramento da cultura do medo, comum a muitas metrópoles brasileiras. Grades, muros, câmeras de segurança, vigilância particular, processo desenfreado de verticalização, falência do espaço público, reforço do espaço privado como lugar do lazer e socialização – leia-se shopping center.
A perda do status da rua como o lugar do encontro já estava na comédia/ficção-científica Recife Frio. O boom da aquisição de bens de consumo por uma nova classe média, hoje delimitada pelo guarda-chuva da classe C, era o que dava liga em Eletrodoméstica. O horror como gênero capaz de dar conta do que é humano fora exercitado em A Menina do Algodão (codireção de Daniel Bandeira) e plenamente executado em Vinil Verde.
Todos os curtas desaguam em O Som ao Redor, filme que tanto inaugura um ciclo – a estreia no formato longa-metragem – como o encerra outro – um arco dramático de temas e interesses que magistralmente se completa. A curiosidade de quem acompanha sua obra há muito tempo é irresistível: depois de um longa como esse, que responde a questões abertas nos curtas, o que Mendonça Filho irá nos contar?
O reinado de Boa Viagem
O espaço em que a ação do filme ocorre é uma rua recheada por prédios em Setúbal, subdivisão do bairro de Boa Viagem, em Recife. Tal lugar, descobriremos, tem uma organização do poder que, apesar das casca urbana, tem pontos análogos a um latifúndio. Voltando mais no tempo, assemelha-se ao engenho da sociedade escravocrata (casa grande, vassalos, jagunços). Se formos mais longe nas comparações, essa rua reproduz a hierarquia de uma sociedade pré-Revolução Francesa.
Existem os plebeus pé-rapados que sobrevivem como podem, casos do vendedor de água mineral que trafica maconha para incrementar a renda e os guardadores de carro, solícitos para proteger o veículo dos riscos do mundo (e causá-los eles mesmos quando a chefia não dá aquela moedinha). Há os súditos que agora desfrutam de uma mínima mobilidade social (esposa que compra TV de plasma, filhos que estudam chinês). Há os nobres, que não trabalham e sobrevivem pela posse de propriedades (o playboy Dinho, o preguiçoso e cínico João, espécie de cavaleiro que entra e sai da estrutura quando lhe convém, e o tio, que mora na única casa da rua). E há o déspota, Francisco, que comanda a rua como um pequeno feudo.
Há um quê de O Leopardo na maneira como se organiza a microsociedade de O Som ao Redor e nos ventos que a abalam, especialmente na presença de WJ Solha como a metáfora do déspota. Não evoca, pela diferença de tempo e cenário, a classe de Burt Lancaster no filme de Visconti, mas sim sua presença marcante, expansiva, dominadora, aparentemente simpática e prontamente cruel.
Isso na maneira que o filme de Mendonça Filha enxerga o espaço social que irá tratar. Como articula seu discurso cinematográfico, porém, é bastante distinto. Percebe-se uma clara predileção ao cinema de gênero, em especial o horror, com uma montagem que privilegia o todo, em detrimento do um, construindo um clima de tensão no espectador que reflete a cultura do medo.
Vê-se muito de Carpenter, especialmente o de A Bruma Assassina, nesse clima de aparente normalidade que guarda uma estrutura fundadora indgina. Há com mais força um diálogo com o Polanski do começo de carreira, mestre em delinear a paranoia das personagens. A água da cachoeira que se transforma em sangue equivale ao flash dos olhos do bebê satânico de O Bebê de Rosemary. Os pés que invadem a casa no pesadelo da menina Fernanda são as mãos que saem da parede para devorar o corpo de Catherine Deneuve em Repulsa ao Sexo.
Respinga também um pouco de faroeste nos conflitos de poder que se estabelecem no trecho final do longa, um acerto de contas que, mérito novamente da montagem e do roteiro, resolve as enigmáticas fotografias em preto e branco do início..
Pois aí está a maestria de O Som ao Redor como crônica de um estado de coisas: abandonar a tradição didática catequizante que historicamente ronda a produção brasileira e devotar-se ao cinema de gênero como manancial de possibilidades para falar sobre o presente, quebrar expectativas. Ao dar essa escapulida, O Som ao Redor torna-se profundamente político.
Heitor Augusto
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