Ano VII

Jogo de Cena

sábado dez 15, 2012

Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho

Depois da obra-prima Cabra Marcado para Morrer (1985), Eduardo Coutinho realizou grandes filmes, Santo Forte (2002) e Edifício Master (2002), que se caracterizavam pelo dom do diretor de escolher bem seus entrevistados e conseguir extrair deles revelações ou uma humanidade que escapava a vários outros documentaristas mortais.

Para abordar as relações religiosas de um grupo (Santo Forte) e para radiografar os moradores de um condomínio (Edifício Master), Coutinho, mais do que construir filmes, construiu um método, construiu um dispositivo fílmico próprio. O dispositivo, ou os procedimentos adotados na filmagem, o como registrar, se tornaram para Coutinho mais importantes que o tema do filme em si e passaram a dar ao filme uma diretriz.

E, se os bons depoimentos dos filmes anteriores só se tornaram possíveis graças à filmagem digital, que não limitava o tempo de gravação e não quebrava o fluxo da entrevista, fluxo tão bem orquestrado pelo diretor que sabe jogar com o depoente e respeitar o silêncio como momento revelador, o passo seguinte foi aliar à ideia do dispositivo a noção do acaso, do inesperado encontro com o tema do filme, tema que passa a nascer do nada ou motivado por um desafio como aqueles que existiam nas antigas gincanas, caso de O Fim e o Principio (2005) no qual o tema é encontrado a posteriori, com a equipe se dirigindo a uma cidade qualquer e lá vendo o que renderia um filme.

Jogo de Cena (2007), um marco na história do cinema brasileiro das últimas décadas, resulta da confluência destas duas experiências. É também um filme que brinca com a possibilidade de se fazer, ou encontrar, um filme, e, neste sentido, se parece muito como Moscou (2009), ainda que Coutinho diga que não tenha encontrado em Moscou um filme ou o filme que queria.

E Jogo de Cena é um marco porque ao embaralhar documentário e ficção, ao amalgamar a voz dos depoentes com a de atores que se fazem passar por eles, a ponto de não sabermos ao certo se aquela é a realidade ou o seu duplo, acaba problematizando também a (des)crença em relação à verdade posta e imposta pelo cinema documentário e pelo documento filmado dado como real, o “é tudo verdade”, a suposta verdade do mundo e no mundo. Marco também porque brinca deliciosamente com o caráter lúdico da representação, o tal jogo de cena, jogo que a vida é; e tendo o palco, presente também em Moscou, ainda que figurado de outra maneira, e em Canções (2011), como espaço ideal para essa construção que é da mesma forma desconstrução. A obra então se dá no entre, ou no movimento pendular do ser e do não ser – para usar um termo da fortuna crítica da obra machadiana, que também serve a Coutinho e a toda obra crítica que se propõe estudar a cultura brasileira nos seus movimentos dialéticos ou limítrofes (como já foi dito, Cabra Marcado também é muito Deus e o Diabo na terra do sol).

Jogo de Cena é, talvez pelas discussões que o fazer cinema na contemporaneidade constrói ou impõe, parente, voluntário ou involuntário, de Close Up (1990), a obra-prima de Kiarostami. Em ambos, a problematização do real e do homem frente ao real, no limite do que é ou não representação, essência ou aparência das coisas, serve para se especular a própria natureza do cinema e do espaço da encenação no mundo, ou do mundo como encenação, visto que os personagens/atores ao emprestarem voz a um discurso local estão, ao mesmo tempo, muito impregnados e iluminados por aquilo que há de mais universal na condição humana. São filmes de cineastas que pensam, e que pensam o mundo e o cinema como uma coisa só, como uma experiência única.

Cesar Zamberlan

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