O Viajante
O Viajante (1999), de Paulo César Saraceni
Às vezes eu não entendo as pessoas de cinema. Quando passa um filme como O Viajante, cuja grandeza beira a evidência, não faltam argumentos para destruir o que a mim pareceu uma obra-prima acabada. Bastou, quando morre a menina, que uns balões subissem para alguém vir me dizer que aquilo era ”piegas”.
Sim, piegas – uma das palavras mágicas que usamos, junto com televisivo e hollywoodiano. Mas, nesse caso, que dizer de M – O Vampiro de Dusseldorf, com aqueles balões com irrefreável tendência a subir quando morre a menina que os leva? Piegas… talvez.
A falta de generosidade é o que mais me espanta nisso. E um certo ódio à liberdade, que parece ter acompanhado boa parte da carreira de Paulo César Saraceni. Porque O Viajante (como outros de seus filmes) são manifestos de liberdade. Ali pode aparecer um amigo cantando, sem nenhuma explicação mais profunda, ou mesmo plausível, que o prazer de Saraceni ver um amigo cantando.
Sim, mas O Viajante é uma tragédia. Uma das poucas que temos. Uma das melhores, senão a melhor. Lá está a mulher sendo obrigada a arrastar seu filho retardado, a ver sua vida consumida naquele fim de mundo. Fim de mundo mineiro, portanto católico. Até que ela topa com o belo viajante e percebe que, por ele, pelo prazer, vale a pena perder a alma. Vale a pena atirar o filho num barranco, se preciso.
Porque diante do desejo, ou melhor, tomada pelo desejo, ela não pode senão odiar esse Deus que a tortura, esse Deus que é a sua desgraça. Então ela não hesita em voltar-se contra ele. Quem luta contra Deus sabe que a derrota é certa. Mas: mas que importa? Só importa o combate: aquela sacristia destruída, profanada. Uma das cenas mais belas do cinema brasileiro (e mais que isso) na virada do século. O melhor momento de Marília Pêra no cinema (na vida, talvez?). Um momento que dizem ter sido tão mais sofrido quanto é verdadeiro seu catolicismo…
O Viajante é um filme sem efeitos fáceis. Justamente por isso um filme para não esquecer.
Inácio Araujo
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