Curta-metragem, um balanço
Curta-metragem, um balanço
Nota do redator
Este texto já nasce incompleto. Com a democratização trazida pelo digital, torna-se um exercício hercúleo assistir a todos os curtas produzidos nos últimos 20 anos. Faz-se neste artigo um esforço para alguns traçar pontos de aproximação e distanciamento entre os filmes. Priorizou-se também um corte dentro do recorte deste dossiê da Revista Interlúdio, privilegiando mais o que foi feito desde 2002, e não 1992, por ilustrarem carreiras ainda em consolidação ou de realizadores que chegaram há pouco ao primeiro longa – diferentemente da geração ativa no primeiro momento da Retomada, hoje ao menos no quarto, quinto longa.
1992 começa com o fim do cinema brasileiro. Pornografia, o protesto em formato de curta-metragem de Murilo Salles e Suzana Werneck, é um manifesto contra a execução sumária da produção. “Você penetra forte, arrogante, eu imobilizado a 24 imagens por segundo. Sou tela e luz, nenhuma sedução possível”, letreiro sonoramente embalado pelo Hino Nacional. Um filme que a pornografia não é o curta que assistimos, mas a extinção da instituição fomentadora.
Naquele mesmo contexto surge outro componente fundamental para solidificação e difusão do curta-metragem: o Festival Internacional de Curta-metragem de São Paulo, que desde então tem sido a principal janela para exibição de filmes do formato (apesar de hoje já não mais estar solitário, posto que há um punhado de festivais com fortes traços de curadoria com os curtas).
Naquele momento havia um grupo de diretores paulistanos que em cenário de terra arrasada é quem traziam alguma esperança na realização. Em especial, Tata Amaral, Eliane Caffé, Beto Brant, Francisco César Filho, José Roberto Torero. Uma geração importante, que tentou não deixar a peteca cair e que fez um cinema com alguma pretensão.
Deixaram para a História alguns bons filmes – Viver a Vida (1991), Arabesco (1990), Dov´è Meneghetti? (1989), Rota ABC (1990), Amor! (1994) –, mas é fato também que, comparado com o que se faz hoje, seu cinema exige muito menos repertório do interlocutor. Uma geração que ousou menos. Não significa dizer que tudo que se faz hoje é bom só porque apresenta algum tipo de inquietação narrativa: significa dizer que os filmes feitos hoje, bons e ruins, em geral pedem que o espectador (e a crítica) tenha mais vocabulário, mas principalmente disposição em se deslocar rumo ao filme.
Fora de São Paulo, no início da década de 1990 Jorge Furtado era o curta-metragista de maior visibilidade. Seu Ilha das Flores ganhou a Berlinale em 1990 e Clermont-Ferrand em 1991. Em 1992, ganharia novamente o evento francês dedicado a curtas com Esta não é a Sua Vida. Furtado ilustra a geração da Retomada, que teria entrado no longa no começo dos anos 1990, mas foi castrada pela implosão do cinema por Collor. Naquele momento, Furtado se destacava como um diretor que fazia suas críticas ou pelo embaralhamento de gêneros (o falso documentário como Ilha das Flores e Esta Não é a Sua Vida) ou pela comédia (Ângelo Anda Sumido, filme bastante contemporâneo na abordagem da cidade aprisionada por grades).
Se Furtado era o que de mais interessante havia entre os curta-metragistas há duas décadas, na aurora da segunda década dos anos 2000 é Kleber Mendonça Filho que construiu a mais interessante obra do formato. O ponto de diálogo entre os dois é uma produção cuja crítica surge de um jogo de gêneros.
A diferença, porém, é que Mendonça Filho não faz uso do didatismo (talvez necessário naquele momento?), algo comum nos curtas mais conhecidos de Furtado. E o realizador pernambucano construiu uma obra que tem uma habilidade especial em captar um estado de coisas. Primeiro por Eletrodoméstica, um filme cuja narrativa não é comandada pelos corpos dos atores, mas pelos bens de consumo – televisão, controle remoto, aspirador de pó, ventilador, máquina de lavar etc. Depois em Recife Frio, misto de comédia e ficção científica que discute a política a partir de um entendimento sobre a cidade, o espaço público e o privado.
Mendonça Filho lidou também com o horror em A Menina do Algodão (codireção de Daniel Bandeira) e na fábula Vinil Verde. Há também o filme de amor e solidão, Noite de Sexta, Manhã de Sábado (2007).
Mas o fato é que salta também a força política dos filmes de Mendonça Filho, especialmente para quem já viu o inédito em circuito comercial (mas que já circulou por bastante festivais) O Som Ao Redor, seu primeiro longa de ficção. Vê-lo é guardar a sensação de que cada um dos curtas do diretor o levaram coerentemente a esse longa-metragem.
A virada dos anos 200: a Internet
O começo do Século 21 marca uma espécie de arejamento para a produção brasileira em curta-metragem. A circulação além-fronteiras dos filmes aumenta pela Internet – seja com fóruns e comunidades de compartilhamento, seja por meio da crítica que encontra expressão nas revistas eletrônicas, estendendo o lastro de permanência de um filme.
Para um conjunto então jovem de realizadores já não havia mais sentido em fazer uma parada obrigatória no Cinema Novo, seja para afirmá-lo ou negá-lo. A proximidade entre o filme brasileiro com o seu passado ou com o contemporâneo fisicamente longe (os asiáticos, por exemplo) é equidistante. A facilidade em tomar contato com cinematografias antes remotas cresceu de tal forma que hoje fala-se com naturalidade que “o Fulano é um sub-Tsai Ming-liang” ou “o Cicrano é um sub-Apichatpong” e por aí vai.
É na virada dos anos 2000 que uma geração de cinefilia intensa e ampla sai da toca e começa a circular com mais retumbância. O prêmio de melhor filme na mostra Cinefondatión – dedicada a filmes de estudantes – do Festival de Cannes a Um Sol Alaranjado (2001), de Eduardo Valente, é um marco.
Esse é um dos curtas que sobrevive ao tempo, que faz sentido não apenas se observado naquele contexto. Sobrevive à precariedade latente por ter força como cinema: uma narrativa concentrada numa decupagem milimétrica, na repetição dos gestos dos personagens que vemos dentro do quadro e pela vivacidade dos sons fora do quadro (televisão, carros, crianças). Ou seja, um filme simples, mas bastante forte.
Reláção tátil com o espaço
Resultado desse contexto é o surgimento de produtoras/coletivos, agrupando diretores que dividem não só ideias sobre cinema, mas entendem que juntar forças é fundamental para a sobrevivência de uma produção numa cinematografia grosso modo polarizada entre o “autoral” e o “comercial” – como se fosse possível dar conta apenas com tais rótulos.
A primeira a deslocar as atenções fora de Rio de Janeiro-São Paulo-Rio Grande do Sul é a Teia (2003), de Minas Gerais. Floresce uma produção que dialoga – com maior ou menor sucesso – com as artes plásticas e a vídeo arte. Dentro das particularidades de cada realizador, percebe-se uma proximidade estética dos filmes, especialmente no estabelecimento de uma relação tátil com o espaço, uma busca da sensibilidade à flor da pele, narrativa rarefeita, um cinema que busca mais a imersão do espectador.
No conjunto da obra, destaque para os filmes de Helvécio Marins Jr., em especial para dois que chegam a resultados diferentes: Nascente (2005), que se mostra uma efetiva experiência ao partir do eu e abrir uma janela para o mundo, e Trecho (2006, codireção de Clarissa Campolina), uma reiteração do artifício, a sensibilidade tornando-se algo sub-reptício. Vale lembrar também de Perto de Casa (2009), de Sergio Borges.
Outra saída do eixo: Ceará
Na última década tomou corpo no Ceará um cinema de rigor formal, de planos fixos e longos. Petrus Cariry é um dos realizadores mais fortes nesse contexto. Cariry nunca escondeu que tanto o português Pedro Costa e o húngaro Béla Tárr exerceram fascínio na sua formação cinéfila. Em seus curtas, a dicotomia entre cidade e sertão, agitação e calmaria; o passado e o presente, uma percepção de mundo trazida pela velhice, preocupação sobre solidão e finitude. A pólis e o campo.
Com a parceria de Firmino Holanda, Cariry desenvolve uma verve mais barroca especialmente na edição de som. A posterior parceria com o fotógrafo e realizador Ivo Lopes Araújo daria mais solidez a uma proposta de cinema: se em A Velha e o Mar (2005) os temas de sua obra tinham um tratamento mais rudimentar, em Dos Restos e das Solidões (2006) é um passo a frente. Em O Som do Tempo (2010) Cariry, que já havia rodado o longa O Grão, atinge o pico no tratamento das questões de seu cinema.
Cronologicamente posterior a Petrus, um dos relevantes acontecimentos também no Ceará é a criação da produtora/coletivo Alumbramento em 2006, reunião de realizadores com proximidade de pensamento, mas que especialmente se aproximaram para tornar possível a existência de um cinema de guerrilha. Até o fim de 2012, a produtora contabiliza 31 curtas.
Se em Cariry o sertão, a solidão e o tempo são eixos fundadores, os filmes da Alumbramento, em geral entre os melhores, trabalham com a questão do diálogo/incomunicabilidade, oferecem uma possibilidade de sonho e ludismo aos personagens, refletem um desejo de cinema e um diálogo com a cinefilia, transpirando com frequência uma aura de amor.
Na intensa e independente produção da Alumbramento, vale citar alguns filmes. Passos no Silêncio (2008), pelos apuro nos enquadramentos, e Flash Happy Society (2009) e Dizem que os Cães Veem Coisas (2012) – os três de Guto Parente –, pelo enfrentamento inteligente com questões do contemporâneo; A Amiga Americana (2009), de Ricardo Pretti e Ivo Lopes Araújo, por apontar possibilidades de um desfecho solar, e Odete (2012), de, Clarissa Campolina, Ivo Lopes Araújo e Luiz Pretti, por ser o oposto; e Não Estamos Sonhando (2012), de Luiz Pretti, pela crença na capacidade do cinema em interferir na realidade, refletindo um desejo de cinema.
Cinema político
Falar sobre o que há de melhor no cinema que se pretende político entre os curtas-metragens é obrigatoriamente fazer uma parada na produção pernambucana. O melhor ao olhar um conjunto de filmes é perceber que o didatismo passa ao largo desses filmes.
Isso vale para Recife Frio, já comentado neste texto, mas também para outros dois curtas em especial: Praça Walt Disney (2011), de Renata Pinheiro e Sergio Oliveira, e Câmara Escura (2012) de Marcelo Pedroso. O primeiro porque busca nos próprios gêneros cinematográficos – comédia, musical – a ferramenta para construir um discurso; o segundo porque faz, quase por acidente, uma radiografia do medo na sociedade urbana – um acidente que revela, joga luz.
A política, nos dizem esses filmes, passa invariavelmente por um modelo de cidade. O embate está aí: na verticalização desenfreada, enclausuramento dos shoppings, muros altos, grades e câmeras de vigilância. Questões rascunhadas no curta, mas que viriam a povoar os longas de outros realizadores.
Horror na classe média
Juliana Rojas e Marco Dutra – seja nos voos solos ou nas parcerias –, são os realizadores que, ao lado de Kleber Mendonça Filho, mais mostraram solidez como curta-metragistas e estrearam num longa de ficção – Trabalhar Cansa – aprofundando temas e estilos já rascunhados no formato mais breve.
Com um diferencial: sua devoção ao cinema de gênero, em especial o horror, os coloca como uma exceção na cinematografia brasileira. Outro aspecto distinto de sua obra é situar o gênero dentro da classe média, recorte social também não muito comum por aqui. Lençol Branco (2003), Um Ramo (2007) e O Duplo (2012, direção solo de Rojas) são seus melhores filmes.
Mas Rojas e Dutra não são os únicos a terem no horror um porto seguro. Com Amor Só de Mãe (2002), Dennison Ramalho deu uma ótima contribuição ao gênero ao livremente apropriar-se da música Coração Materno, de Vicente Celestino. Em Ninjas (2010) conseguiria ainda usar o horror para num tema polêmico: os fantasmas cujos corpos foram assassinados pela PM voltam para assombrá-la.
Faz-lhe companhia também Mens Sana in Corpore Sano (2011), de Juliano Dorneles, um dos filmes mais originais e bem realizados na produção recente. O horror entra como instrumento para a ironia do culto ao corpo. O final desse curta, alinhado ao desfecho do longa Trabalhar Cansa, demonstram como o cinema de gênero pode ser efetivo em suas afirmações sobre o mundo real – a neurose do corpo perfeito aqui, o mundo do trabalho lá.
Um cinema sem enfrentamento
A mesma classe média retratada pelo cinema de gênero e que serve para ilustrar um mal estar é também a matéria para um cinema dito delicado e sensível, mas que na verdade tem pouco lastro. Seus conflitos são amaciados, temperados em banho maria, retirados o sal para não tirar o lugar cômodo do espectador. Em última instância, filmes que geralmente são chamamos de fofos.
Entre os que mais circularam estão Espalhadas pelo Ar, (2007) de Vera Egito; Alguma Coisa Assim, (2006) de Esmir Filho; Estação, (2010) de Márcia Faria; L,(2012) de Thaís Fujinaga. Filmes com boas mensagens, corretamente realizados, bem produzidos e de bom gosto, mas que não pedem um deslocamento mínimo do espectador, sumindo rapidamente da memória.
No outro lado do fronte, tem-se uma produção que lida com o desconforto como algo da própria experiência cinematográfica, traindo expectativas. Alguns deles: Muro (2008), de Tião; Na Sua Companhia (2011), de Marcelo Caetano; Memórias Externas de uma Mulher Serrilhada (2012), de Eduardo Kishimoto; Oma (2011), de Michael Wahrmann – os três carregando também um subtexto sobre o status da imagem no mundo contemporâneo –, e Ovos de Dinossauro na Sala de Estar (2011), de Rafael Urban.
Heitor Augusto
© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br