Ano VII

O Céu de Suely

segunda-feira dez 17, 2012

O Céu de Suely (2006), de Karim Aïnouz

O Céu de Suely estrutura-se em deslocamentos. Nos primeiros planos do longa-metragem de Karim Aïnouz, a emulação de um filme caseiro em super-8 instala um tempo etéreo de grandes expectativas. Atravessadas pela subjetividade de Hermila, por sua voz a transmitir um sentimento de profunda afeição pelo namorado Mateus, as imagens convidam à contemplação de uma personagem que anseia entregar-se à vida. Embora a textura granulada do super-8 já apresente alguns sinais de deterioração, o corpo efusivo de Hermila parece contaminar toda a mise-en-scène, desestabilizando-a através do prazer da soltura e do desgoverno. Terminada essa breve seqüência de abertura de O Céu de Suely, o lirismo da promessa amorosa aos poucos se dissolverá nas mudanças da narrativa e da forma estética. Após partir de São Paulo e regressar a Iguatu, cidade onde moram a sua avó e a sua tia, onde espera se estabelecer e abrir um pequeno negócio, a protagonista irá se deparar com o desencantamento de ser abandonada pelo homem que ama.

Em O Céu de Suely, filme que se passa no interior do Ceará, a localização geográfica e simbólica é o sertão brasileiro. Historicamente distante daquele sertão proposto por autores do Cinema Novo, a buscar essências identitárias e políticas do popular em obras como Vidas Secas (1963) e Maioria Absoluta (1964), a Iguatu de Hermila é um lugar em irreversível transição. A contemporaneidade dessa cidade localiza-se em uma fluidez cultural a desterritorializar a imagem fixada pelo cinema brasileiro socialmente engajado dos anos 1960. No filme de Aïnouz, a hibridez é componente central de Iguatu: são os camelôs que tomam as ruas, o caça-níquel no interior de um bar, o karaokê onde os personagens se divertem ao som de um forró. Como essa cidade, Hermila é uma protagonista absorvida pela inevitabilidade do deslocamento. Ao descobrir-se abandonada pelo companheiro, seu impulso é adotar o nome Suely e rifar o corpo com o objetivo de comprar uma passagem só de ida para Porto Alegre. Não à toa, o posto de gasolina “Venezia” (outro desses híbridos culturais) é um dos “não-lugares” mais freqüentados pela protagonista: à beira da estrada, no fluxo contínuo dos caminhoneiros, o posto encontra-se na fronteira simbólica entre ficar ou abandonar Iguatu.

Em O Céu de Suely, o acesso a esse sertão transitório, destituído das totalizações sociais que foram tão comuns ao Cinema Novo, é mediado pelo universo particular de Hermila. Seu olhar parece inclusive impulsionar a mise-en-scène a (re)enquadrar o sertão dentro das inquietações que mobilizam a protagonista: trens em movimento, estradas e um vasto céu com nuvens são imagens que remetem ao deslocar-se e que recorrentemente aparecerem no filme de Aïnouz. Embora permaneça uma questão antiga – a da migração nordestina para o sul e sudeste do país -, esta não é mais provocada pela fome e pela miséria a rondar a classe popular. Mesmo que Hermila tenha vários motivos para ficar em Iguatu – a família, o filho e uma antiga paixão – há uma pulsão subjetiva que a convoca à desterritorialização intermitente. Como um filme imerso em transitoriedades, O Céu de Suely estimula uma reflexão urgente em tempos contemporâneos: o de pensar um lugar (ainda) possível para o cinema que deseje propor engajamentos políticos no presente.

Reinaldo Cardenuto

© 2016 Revista Interlúdio - Todos os direitos reservados - contato@revistainterludio.com.br