O ator no cinema brasileiro
O ator no cinema brasileiro
O ator japonês Yoshi Oida cita um colega do teatro kabuki, no livro O Ator Invisível, ao falar sobre técnicas de interpretação: “Posso ensinar-lhe o padrão gestual que indica olhar para a lua. Posso ensinar-lhe como fazer o movimento da ponta do dedo que mostra a lua no céu. Mas da ponta do seu dedo até a lua, a responsabilidade é inteiramente sua”.
É uma simbologia simples, voltada principalmente para o teatro, mas muito pertinente para definir o trabalho dos atores no cinema brasileiro das últimas duas décadas. Talvez a mais importante modificação na produção cinematográfica do país, após o baque sofrido na era Collor, no início dos anos 1990, foi a reinvenção do papel do ator.
O trajeto entre a ponta do dedo e a lua foi bastante alargado, a ponto de criarmos funções praticamente inexistentes no cinema nacional, como o preparador de elenco. Depois de Iracema, uma Transa Amazônica, a mescla de profissionais e amadores se intensificou, tornando-se uma variante bem-sucedida, como revelam Cidade de Deus e Mutum.
O documentário cooptou o ator na sua metamorfose para borboleta, ganhando outros coloridos ao brincar de falso e verdadeiro e colocar em xeque a veracidade que sempre foi atrelada ao gênero. É o que pode ser extraído em Jogo de Cena, Viajo porque Preciso, Volto porque Te Amo e Uma Longa Viagem, entre outros exemplos.
O maior ganho, porém, está no próprio ator como coautor do filme, reconhecimento tardio de um cinema que estendeu demais sua “Politique des auteurs”, expressando tão somente a visão de seu diretor. O ator era apenas um veículo do discurso do realizador, adequando-se ao que ele tinha em mente.
O melhor exemplo dessa função subordinada do ator é Glauber Rocha gritando atrás da câmera os diálogos de Paulo Gracindo em Terra em Transe. Muitas vezes o intérprete dava voz a uma espécie de alter-ego do cineasta, como os vários Marcelo de Walter Hugo Khouri ou os personagens de Paulo José nos trabalhos de Domingos de Oliveira.
Havia exceções, claro. Mas que apenas comprovavam a regra. Leila Diniz levava para o set a sua personalidade forte e libertária. Jece Valadão era o machão e o Wilson Grey o eterno antagonista. Além do Cinema Novo e do Cinema Marginal, o cinema de autor prevalecia em todos os gêneros, até mesmo na pornochanchada.
Essa relação se inverte completamente no cinema da retomada. O diretor continua sendo o mentor do projeto, mas divide com o ator os méritos da autoria, do filme como realização. O discurso visível não é mais importante, pois é interiorizado nos atores. Troca-se uma explosão retumbante por uma implosão que provoca estilhaços por todos os lados.
Por esse efeito, seria mais bem-sucedido? Sim e não. Os tempos anteriores, da ditadura em especial, precisavam dessa hecatombe. Não se podia esperar chegar à lua. Eram tempos urgentes. Hoje o radicalismo e a suavidade estão num patamar idêntico, mas é fato que o espectador (de um cinema de repertório) quer ser tocado e não lobotomizado.
“Beleza espiritual”
Em busca de um tempo próprio, que não é o tempo narrativo, mas sim o de decantação do personagem, os diretores devolveram essa função ao ator, dono de origem do papel. O diretor só pode chegar ao Yu, a existência – usando novamente uma citação de Yoshi Oida, que, no mesmo livro, descreve as observações de um sábio chinês.
O ator seria uma bandeja especial usada para oferendas aos deuses. Entre os objetos preciosos que lá constam, estão o Yu (a existência) e o Mu (o nada). O primeiro é o efeito visível da ação – o que vemos, ouvimos e reconhecemos. Já o Mu é a forma, difícil de detectar. É onde está o mais elevado nível da existência.
Não é só a sua presença que importa, mas a ausência também, já que o personagem está incorporado a cada fotograma. Essa é, portanto, a principal característica dos filmes no setor da atuação. O maior avanço do cinema brasileiro está no que Oida define (valendo-se de uma classificação feita pelo mestre zen Zeami) como “beleza espiritual”.
O trabalho do ator é dividido em três conceitos – pele, carne e osso. O primeiro diz respeito à beleza externa, o que surge imediatamente no campo de visão do espectador. Já o segundo envolve o ritmo e as palavras, enquanto o terceiro, o mais importante, aponta para uma qualidade inata, que age sobre o público de maneira mais interior.
É no cinema da retomada que foi permitida a realização desses três estágios de forma completa. As razões para isso acontecer não são fáceis de serem detectadas, mas muito provavelmente vêm de um conjunto de fatores, partindo da exigência de uma profissionalização do cinema para que possa se autossustentar.
O entendimento do diretor como criador único da obra também se modifica substancialmente. Dependente de uma fonte de recursos híbrida, que mescla poder público e iniciativa privada, o cineasta deixa de ser o senhor da razão, vendo suas experiências formais ficarem limitadas para se adequar a um mercado.
Há um deslocamento de interesse na forma como se quer contar uma história. Não se trata mais simplesmente da câmera como o olho do realizador, mas ter no ator um veículo mais rico de ideias, como corpo que vê, escuta, fala e sente, explorando as contradições humanas. Os grandes personagens do período têm esse escopo.
Se pinçarmos o Madame Satã de Lázaro Ramos (do filme homônimo), o André de Selton Mello (Lavoura Arcaica) e o Neto de Rodrigo Santoro (Bicho de Sete Cabeças), em filmes produzidos na mesma época (lançados em 2001) – para nos concentrarmos em apenas três exemplos – perceberemos nitidamente essa “beleza espiritual” acima de qualquer discurso.
O que importa é o embate interno que esses personagens carregam tão fortemente, deixando seu turbilhão mental desaguar numa composição que nos faz sentir o Mu de cada um deles. Em André e Neto, são os conflitos familiares envolvendo a tradição. Em Madame Satã, o conflito se amplia para a sociedade igualmente castradora.
O personagem de Lázaro Ramos afirma que carrega uma raiva “que não tem fim e que não há explicação para ela”. André diz algo semelhante quando tenta definir ao irmão mais velho seus sentimentos, sobre o fato de se ver diferente naquela família aparentemente unida. Em todos eles, há uma dor incomensurável que brota de seu âmago.
Na parte final de Madame Satã, o protagonista encena um monólogo em que acontece a batalha entre um tubarão e Jamaci, cujo resultado é a transformação deles em um só, refletindo assim as ambivalências do personagem, dono de uma grande raiva e capaz de perceber as sutilezas da arte. Entre a violência extrema e a proteção às pessoas próximas.
O corpo, mais do que em qualquer outra época do cinema brasileiro, é uma ferramenta fundamental. A composição de Lázaro tem no físico um poderoso instrumento de diálogo com o espectador. Toda a sua energia passa por ali e é perfeitamente assimilada por quem vê. Assim como em Lavoura Arcaica, em que o corpo de Selton praticamente se funde à Natureza.
O diretor teatral polonês Jerzy Grotowski descreve essa interpretação como “a procura por uma corrente essencial de vida em que os impulsos estão profundamente arraigados dentro do corpo e, ao despertá-los, acontece o desbloqueio que os encaminha para uma abundância que não é a mesma que utilizamos na vida diária”.
Processos diferentes
O trabalho do ator se molda à proposta estética do filme, dando-lhe finalmente prioridade, tempo e material (o preparador de elenco). Como deixa de ser um decalque do diretor, a construção do personagem dita a ação, com uma abertura muito grande para que a história e a narrativa se modifiquem durante a sua feitura.
A busca da realidade não só contamina o processo como interfere na escalação dos atores. Os cineastas buscam os rostos que estampam a coexistência entre o ator e o personagem. Não são tipos, mas uma inserção social próxima ao que está sendo retratado. Caso do elenco de Cidade de Deus ou de O Céu de Suely, em que Hermila Guedes atua.
O contexto regional também faz grande diferença, embora apenas num primeiro momento. Irandhir Santos começou em produções nordestinas bem como Hermila e João Miguel. Aos poucos, como atores revelados no cinema, exibem uma profunda identificação com esse meio, servindo aos mais variados personagens e gêneros.
Enquanto a primeira metade da Retomada viu o surgimento de uma geração que se consagraria mais tarde (seguida, na outra metade, por Juliano Cazarré e Nanda Costa), apareceram outras formas de os atores se relacionarem com os personagens, apresentando novas propostas dramatúrgicas que discutem, fundamentalmente, o ser ator.
Um personagem que reconta a sua trajetória diante das câmeras, mas valendo-se de códigos específicos do cinema e aceitando a interferência do diretor nos rumos da história, de certa maneira ficcionalizando-a, seria um ator por excelência ou alguém cooptado para um projeto cujo propósito é provocar a dúvida sobre o que é real ou não?
Essas “pessoas” não precisam imitar a vida em cena, porque ela já está incorporada ao seu dia-a-dia, sem que lhes sejam provocadas emoções. Mas até aonde essa vivência promove uma contribuição efetiva da encenação? Essa contribuição favorece mais a uma estética ou persiste uma crença no que é vivido, elemento fundamental do ator como criador?
Uma resposta é difícil de alcançar, pois parte de uma avaliação subjetiva sobre o trabalho de representação. Por isso, é mais eficiente estabelecer avaliações tendo como base uma obra, traçando ligações entre um personagem e outro e percebendo assim o que é próprio do exercício do ator e o que diz respeito ao desenvolvimento de um filme em específico.
Processo muito diferente de quando os atores são estimulados a improvisar dentro de um perfil e objetivos conhecidos – outro método que ganhou força no cinema da Retomada. Entre o início e o fim propostos, os atores têm ampla liberdade para criarem os diálogos e as emoções, proporcionando uma coexistência mais forte entre ator e personagem.
A Retomada possibilitou uma outra presença do ator na produção brasileira que não seria possível sem o surgimento de uma geração de cineastas abertos ao processo colaborativo e que, principalmente, determinaram um cinema calcado em personagens, estabelecendo uma nova discussão em torno do desequilíbrio entre atores/autores e diretores/autores: estariam esses se eximindo demais do papel criativo?
Paulo Henrique Silva
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