Ano VII

Lavoura Arcaica

segunda-feira dez 17, 2012

Lavoura Arcaica (2001), de Luiz Fernando Carvalho

Quando surgiu nas telas, em 2001, Lavoura arcaica foi saudado por Carlos Alberto Mattos como “a primeira obra-prima do cinema brasileiro no século 21”. Passados onze anos, a sentença entusiasmada e precoce do crítico se mantém válida. Poucos filmes, antes ou depois, combinaram de modo tão orgânico intensidade dramática e empenho estético.

Narrado em primeira pessoa pelo atormentado André, filho desgarrado de uma família de camponeses de origem libanesa, o pequeno grande romance de Raduan Nassar parecia uma obra infilmável, pela densidade poética de sua prosa, pela dicção elevada de seu discurso, pelo embaralhado de memória e imaginação em sua tessitura.

Ciente do desafio, Luiz Fernando Carvalho decidiu fazer não uma adaptação, mas uma imersão, ao mesmo tempo humilde e ambiciosa, no texto de Nassar. Como se sabe, o diretor se instalou com seu elenco e equipe numa fazenda semelhante à descrita no livro, na qual durante meses todos alternaram o trabalho na terra e a leitura em voz alta do romance, buscando impregnar-se do seu universo.

Além desse acerto inicial de “embocadura”, as outras escolhas fundamentais do cineasta se mostraram inspiradas. O elenco (liderado por Selton Mello e Raul Cortez) é perfeito para dar vida a personagens tão complexos e multifacetados, a fotografia de Walter Carvalho traduz admiravelmente em luz e sombra as dimensões da memória, da “realidade” e do desejo, a direção de arte de Yurika Yamasaki confere concretude ao trabalho de sedimentação do tempo, em contraste com a fugacidade dos gestos, a música de Marco Antônio Guimarães envolve tudo com delicadeza e contundência medidas.

Ao orquestrar esses valores e saberes de modo a fazê-los servir a sua recriação audiovisual da obra de Nassar, Luiz Fernando Carvalho optou pela ousadia e pela exuberância. Não era uma historinha que ele estava contando, mas uma tragédia, uma espécie de atualização da parábola bíblica do filho pródigo por alguém que leu Freud e entendeu (ainda que não necessariamente concorde com ele).

Desde as primeiras imagens – pedaços do corpo retorcido de André, masturbando-se no claro-escuro, sob o som de um trem que se aproxima – o cineasta deixa claro que não seguirá uma encenação convencional, muito menos uma decupagem confortável baseada no campo/contracampo e na continuidade entre som e imagem.

Aos achados de enquadramento e iluminação – como o da citada cena de abertura, ou a magnífica primeira sequência de dança, filmada quase toda com câmera baixa – somam-se os achados de montagem (realizada pelo próprio diretor), como na sequência que alterna a tentativa do menino André de capturar uma pomba com a busca do mesmo André, já crescido, pela irmã Ana (Simone Spoladore, em seu primeiro filme).

Carvalho não se detém diante de nada, nem mesmo do temor da heterogeneidade: planos-sequência sem diálogos (como o das mulheres da casa cumprindo seus afazeres numa coreografia muda) intercalam-se com planos rápidos e curtos de detalhes; a luz doce e diáfana das lembranças de infância contrasta com o expressionismo sombrio da tragédia desencadeada; três vozes se complementam na narração em off (a voz de Selton Mello como o André transtornado, a de Luiz Fernando Carvalho como o André mais sereno e a de Raul Cortez nas longas falas do pai). Há até a inserção de toda uma parábola dentro da parábola, a do homem faminto, narrada em voice over pelo pai, filmada em preto e branco e encenada pelos mesmos atores que encarnam pai e filho (Raul Cortez e Selton Mello).

Se há um eixo que confere unidade e sentido a essa variegada tapeçaria, é a busca constante de expressar duas forças frequentemente opostas: a da terra e a da carne. A primeira entendida como o peso do trabalho, da tradição, da gravidade que puxa o homem para o chão e o incita a criar raízes. A segunda, a carne, entendida como os desejos e pulsões mais profundas do indivíduo, que o levam a errar pelo mundo. Entre a terra e a carne, a família.

Não deixa de ser curioso que a única sequência filmada num campo/contracampo tradicional seja a do diálogo crucial entre o pai e o filho, depois que este retorna de seu autoexílio. Pela força das falas, situadas no coração da tragédia, e pelo duelo entre dois dos maiores atores de suas respectivas gerações, ironicamente talvez seja esse momento “clássico” o que fica mais marcado na sensibilidade do espectador desse filme tão generoso e inventivo.

José Geraldo Couto

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