Holy Motors (Texto 2)
Holy Motors (2012), de Leos Carax
O maior desafio que Holy Motors pede a seu espectador é disposição para percorrer caminhos que não os considerados lógicos, explicáveis e naturais no cinema. Apenas com esse espírito, livre e corajoso, que será possível viver o filme, lidar com ele frontalmente, seja para exaltá-lo ou desmascará-lo.
O alicerce de Holy Motors é inserir-se no próprio cinema, oferecendo, entre as diferentes leituras possíveis, uma interpretação de que aborda, de maneira extasiante, a oportunidade única que o cinema dá de viver outras vidas e histórias que não as nossas, possibilidade compartilhada tanto por quem faz cinema quanto por quem vê cinema: reviver a cada filme, a cada cena, a cada plano, a cada gesto belo.
Mas até mesmo dentro dessa leitura não é aconselhável um olhar cartesiano. Pois essa chance de viver vidas outras pode ser tomada tanto como exaltação das possibilidades do cinema quanto como crítica a uma sociedade virtualizada e de avatares, que adota personagens diversos em diferentes momentos para recuperar o prazer do instante inicial.
Ou seja, se fecharmos uma única leitura do filme, um rio de possibilidades vai passar do lado, imperceptível. Mas não seria essa justamente a graça do cinema e da cinefilia, (re)descobrir um filme a cada revisão? Abrir outros canais de relacionamento com ele, expandindo ou negando os anteriores? Viver um filme além do esgotamento instantâneo do “gostei” ou “não gostei”?
Em Holy Motors, o prólogo funciona como um aquecimento, um alerta sobre como se relacionar com o que virá no restante do filme. Um homem (o próprio Carax) acorda, levanta-se e para em frente a uma parede com uma floresta desenhada. Ele derruba a porta, caindo dentro de uma sala de cinema lotada. Uma afirmação de que para se chegar ao cinema é preciso romper as barreiras das aparências. Só então Holy Motors começa de fato.
O que não é garantia de sentido, conforto ou compreensão. Cartas continuarão embaralhadas. Denis Lavant, ator-fetiche de Carax, vive diferentes personagens, começando o filme como um banqueiro dentro de uma limusine. Em seguida, revela-se que o carro é um camarim em que ele se troca, maquia-se e recebe instruções sobre o próximo encontro. De repente, o personagem – seu nome é Oscar – já não é mais o de um banqueiro, mas de um homem que emula golpes de luta para captura de movimentos (para um videogame?); cenas depois será homem-animal que come flores no cemitério, escracha valores burgueses e assusta a belíssima Eva Mendes; ou um matador de aluguel em vias de cometer um crime.
O que Holy Motors faz nessa primeira parte é derrubar todas as expectativas e pré-concepções, construindo níveis de surpresa na experiência cinematográfica. Quando aparentemente ficou mais simples de acompanhar os caminhos do filme, Carax reboca tudo para outra direção, enfiando um, literalmente, intervalo no meio do filme, com direito a cartela explicativa e Lavant comandando um grupo de sanfoneiros em êxtase.
A partir daí, com o espectador supostamente preparado (ou já resignado com o filme, vai saber) para o inesperado, Holy Motors derruba seguidamente as máscaras do cinema como imitação da realidade. Passa-se a desconfiar na imagem – personagens que morrem e renascem na mesma cena, personagens idênticos lado a lado. Tal questionamento do status da imagem, bastante comum ao cinema contemporâneo, vai se conectar tanto com a primeira parte do filme. Em especial, em dois momentos distintos.
Primeiro, o final da cena do acasalamento cibernético e na presença constante da tela como mediadora do acesso de Lavant à cidade (ele vê a beleza do Arco do Triunfo apenas por um monitor de dentro da limusine). Segundo, na entrada em cena de Michel Piccoli, que representa a voz da dúvida, questionando que “eles” (estaria falando dos que veem filmes?) já não acreditam tanto no que vê, colocando em cheque o ator e o próprio cinema.
Se o trecho em que Oscar tem sua máscara inteiramente sacada ao encontrar a personagem de Kylie Minogue é o mais bonito, a que Lavant vive um velho muito doente, o senhor Vaughan, é definidora das intenções de Holy Motors. No começo, sabemos que se trata de pura representação. Então Carax mergulha a sequência no melodrama e lá estamos nós acreditando na ilusão de realidade, na morte do velho. Em seguida, depois de levar o espectador a um estado emocional, Lavant sai do personagem e desmascara o dispositivo.
Esse desdobramento do personagem inicial de Lavant, um banqueiro, em outros dez, incluindo Oscar, aquele que serve de pés no chão dentro da maluquice, abre uma porta para a conversa com outro filme: Cópia Fiel. Pois a riqueza do longa de Kiarostami está na alteração constante das condições inicialmente estabelecidas para os personagens de William Shimell e Juliette Binoche, que “começam” como meros estranhos e “terminam” como um casal juntos há 15 anos.
É por causa de filmes assim, como Holy Motors e Cópia Fiel, que o cinema revive. Filmes que, à Mané Garrincha, entortam o marcador, fingem que vão para lá, mas jogam a bola para cá. Filmes que traem as expectativas.
Heitor Augusto
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Texto de Leandro Schonfelder sobre Holy Motors
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