O descompasso entre a antiga e a nova escola:
sobre Paul Newman e Alfred Hitchcock
Hoje a idéia corriqueira de grande ator é a do o ator versátil que pode ser uma multidão. Reconhecemos os personagens fortes criados no cinema e depois os atores que os criaram: fala-se mais em Vito Corleone e menos em Marlon Brando; fala-se em Toni Montana e menos em Pacino; fala-se mais em Jake La Motta e menos em De Niro. Mesmo quando lembramos primeiro dos grandes atores modernos e não dos personagens, lembramos como eles são versáteis e encarnam muitos tipos. Esse tipo de valor é bastante consolidado.
Antes John Wayne, Cary Grant e Gary Cooper eram sempre eles mesmos, porém representavam algo sólido que transcendia o culto da personalidade (hoje é quase o contrário no mundo das estrelas). Hoje isso geralmente, segundo essa lógica moderna da arte de interpretar, é um problema ou é visto com algo menor. Clint Eastwood, por exemplo, pode até ser visto como grande diretor, porém só a idade lhe trouxe o prestígio de ator respeitável, já que ele sempre representou o mesmo tipo (o tough Guy, seja cowboy ou policial) e fez carreira em uma época em que atores que interpretavam mafiosos e retardados com a mesma gravidade estavam no Olimpo oscarizado.
Esse conflito entre diferentes escolas de interpretação – e também entre o clássico e o moderno em Hollywood – talvez tenha seu episódio mais representativo no embate entre Alfred Hitchcock e Paul Newman, em ocasião da filmagem de Cortina Rasgada.
A relação de Hitchcock com os atores é peculiar. Quando ele disse que “ator é gado”, muita gente levou a mal, como se ele considerasse que o ator não era mais do que uma peça cenográfica animada. Muitas vezes que críticos e cineastas atacaram a escola de interpretação da Hollywood clássica usou-se essa frase de Hitchcock como exemplo, a fim de dizer que ele (e alguns outros cineastas) não era mais do que um diretor aplicado a fazer somente iconografia humana com seus atores. Isso é bobagem, pois ele amava os atores e seus estilos: Cary Grant e sua elegante falta de jeito; a emoção implosiva e puritana de James Stewart; Ingrid Bergman e sua sexualidade expressada pelos olhos e pela respiração de boca semi-cerrada; o movimento e a postura de Grace Kelly, que conseguia revelar sua silhueta, mesmo estando escondida sob um figurino recatado e virginal. Ele prezava atores que sabiam fazer o mínimo para tornar evidente o carisma e a personalidade, que integravam sua humanidade e charme a um mundo de formas e cálculos (o cinema). O ator como elemento humano fulgurante em um mundo que é todo artifício.
Daí seu problema com Paul Newman em Cortina Rasgada. O que se faz sentir no filme é o descompasso quase inconciliável entre o astro e o mundo do diretor. Para Newman, grande artista formado pelo método Stanislavski, era necessário construir uma verdade, a verdade do personagem. Ao passo que para Hitchcock o importante não era a verdade construída pelo ator (seus filmes já eram cheios de construções artificiais), mas o ator mesmo, sua verdade mesma, natural, seu charme e carisma ontológicos que agonizavam em mundo falso e provisório.
“Dirigir Cary Grant é só colocar a câmera na frente dele”, já disse Hitch a Peter Bogdanovich. Já Paul Newman era imprevisível e queria discutir motivações. Grant tinha consciência de sua imagem e que era isso que importava no cinema. Desse modo o ator se adequava perfeitamente ao método do diretor. Para Newman a imagem era transmutável, não era uma verdade em si mesma. Isso criou um conflito que se faz sentir no filme. Paul Newman está em outra rotação.
Francis Vogner dos Reis
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