Ano VII

Holy Motors

terça-feira dez 4, 2012

Holy Motors (2012), de Leos Carax

"Tenho mais memórias do que se tivesse mil anos" – Charles Baudelaire

Percebe-se em Holy Motors uma recorrente idéia de "dar conta do tempo": "viver a vida em um dia", "temos 20 minutos para recuperar os últimos 20 anos". É como se as duas horas do filme representassem uma zona limítrofe para Leos Carax filtrar e depositar as idéias, abortadas ou não, que teve nos últimos 13 anos (tempo que ficou sem dirigir um longa). A utilização de um cenário fantástico, onde um personagem ganha a vida "atuando" em diferentes e desconexas situações (quase como "estágios" em um jogo de videogame), mais do que manifesto/prestar de contas a projetos que não viram a luz do dia, vem adicionar camadas à questão entre imagem versus realidade e o "tempo fora de eixo" Shakespeariano, explicitando uma multi-dimensionalidade e intertextualidade de forma a incluir a verdade como paradoxo. Ora, a crise da imagem e a ambiguidade, características tão caras ao maneirismo – que no cinema teve seu auge quando dos primeiros passos do diretor, são também pilares de sua obra, de modo que seus personagens não estão longe dos de um Raul Ruiz, flanando entre corpo e espírito, peso e leveza, ser e não ser. A própria idéia da transmutação de personagens não é para ele uma novidade: a relação entre Pierre e Isabelle em Pola X chega a um ponto no qual ele não mais consegue se distinguir dela. "Eu é um outro".

Podemos então pensar na carreira de Carax, cineasta Rivettiano, como uma coerente progressão, onde um filme embriona seu sucessor ao mesmo tempo que parece iluminar um novo aspecto em relação a seus anteriores. Assim, se para o personagem Alex em Boy Meets Girl só o que importa são as primeiras vezes, sumarização de um cinema concentrado na força do instante (transmitir a intensidade dos momentos mais do que usá-los como blocos para construção narrativa), aqui o Sr Oscar vive sua vida em uma profusão de "primeiras vezes", cada uma delas uma experiência (de vida) completamente diferente da anterior. Nada importa senão a descoberta, a emoção da primeira vez. A "beleza do gesto" que o faz continuar é a de se inserir dentro de um novo contexto e deste tirar algo de novo e belo. Reinventar-se.

Esta reinvenção, para o diretor, passa obrigatoriamente pelo fato de filmar em digital: a ambiguidade entre o desprezo pelo formato e as oportunidades que ele oferece, tal choque de idéias é explorado para gerar energia criativa – mais notadamente na sequência do "motion capture", onde os corpos efetuando os movimentos a serem capturados pelas luzes e transformados em computação gráfica são muito mais interessantes, plásticos e sensuais do que o resultado "computadorizado", extremamente vulgar e exagerado. Chegamos então a um novo questionamento ao estatuto da imagem: o da imagem "pura", capturada pelas câmeras e que denotam o olhar-discurso de seu autor versus a reprodução digital, virtual – esta, apenas uma mediadora de mundo. Um momento esclarecedor desta opinião é aquele onde Céline diz a Oscar que "Paris está linda esta noite", no que Oscar, ao invés da janela, olha a rua mediada por um monitor de computador (que logo altera sua imagem para um modo de "visão noturna", verde, artificial). "Ainda queremos ação?", pergunta-se, ante este simulacro de mundo ("realidade virtual").

Ao cinema resta a mesma pergunta (não por acaso a palavra usada é "ação"), e em Carax uma nova realidade implica na morte da anterior – mas não é por isso que trata-se aqui, como muito foi dito, de uma "elegia ao cinema": não há referências, mas apropriações. Não há "um filme sobre o cinema", mas um filme PELO cinema. É por ele que a morte e o (re)nascimento são viabilizados, como instâncias libertadoras para os próximos "serviços" – e se as pontes parisienses foram importantes em sua obra (assim como eram no pensamento barroco) enquanto agentes de ligação (e cruzamento) entre dois mundos, aqui a função fica por conta da limousine branca, ao mesmo tempo caixão e útero, que acolhe um Sr Oscar por vezes moribundo e o entrega novo em sua próxima dimensão.

A tarefa de viver, morrer e viver de novo dentro deste universo, de ser agente de mudanças, de captar os desbalanços do mundo e atirá-los de volta, não poderia ser de outro ator que não Denis Lavant – não um alter-ego, mas um veículo de fisicalidade, uma bússola visual norteando sua câmera; quem permite que "tudo o que é pesado se torne leve, todo corpo vire bailarino, todo espírito vire pássaro". Lavant, para Carax, é o Alfa e Ômega.

Sobre a morte, já mencionada acima, há uma mudança de perspectiva: se toda sua obra até então era guiada por uma pulsão de morte comum aos jovens poetas (morte como fim inevitável de um fluxo desenfreado), aqui ela é ponto de partida para uma reflexão – sobre a existência, a mortalidade, a vida. A forma de lidar com a morte vai sendo trabalhada em cada um dos capítulos: da velha pedinte cuja morte "parece nunca chegar" até o assassinato (à noite) do banqueiro interpretado no início do dia/filme pelo próprio Sr Oscar (uma mise-en-abyme que sugere uma rachadura no sistema, talvez um indício de que o Sr Oscar apenas se aproprie de vidas já existentes, que depois seguem autônomas); da encenação da novela de Henry James, com o Sr Vogan (cujo nome encontra-se numa das lápides do cemitério invadido anteriormente por Merde) em leito de morte até o encontro de Oscar e Jean, prestes a interpretar o suicídio de Eva, temos uma espécie de escala da morte em diferentes estágios e circunstâncias da vida.

Neste sentido, o encontro de Oscar e Jean (Kylie Minogue), talvez o mais belo momento do filme, é notável: há uma interpolação de realidades, ao nível diegético (o encontro dos dois "atores" fora do serviço), provocando diálogo com outra obra (o encontro se dá na loja Samaritaine, praticamente um personagem em Os Amantes de Pont-Neuf) e com a própria realidade (os personagens se encontram "depois de 20 anos", data exata da outra filmagem). O próprio prédio da Samaritaine, um corpo moribundo per se (a loja está há anos fechada e vai virar um hotel), reforça o caráter metafísico-fantasmagórico do encontro: o que são os dois, senão fantasmas perdidos no tempo e espaço, tentando reconciliar-se com vidas passadas? Ou nos próprios versos entoados por Jean, "quem fomos nós?".

Holy Motors, filme de crise (do homem, do artista), talvez uma tentativa de acerto de contas com seus fantasmas, não responde esta, mas sim outra pergunta: "Aonde o cinema (ainda) pode ir?"

Leandro Schonfelder

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Texto de Heitor Augusto sobre Holy Motors

 

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