Ano VII

Balanço da Competição Novos Diretores – Brasil

quinta-feira nov 8, 2012

Balanço da Competição Novos Diretores – Brasil*

Falta de material para sustentar um longa-metragem, confusão entre cinema e televisão, irregularidade entre momentos bonitos e vergonhosos. Estas são alguns traços comuns à maioria dos 14 longas brasileiros da Competição Novos Diretores na 36ª Mostra Internacional de Cinema.

Organizar uma seleção com uma dezena de longas inéditos num calendário de festivais que tem pelo menos cinco eventos de grande porte antes da Mostra será sempre uma tarefa hercúlea. É praticamente impossível reunir uma competição equilibrada em bom nível.

O que se viu entre esses 14 longas é uma quantidade grande de produções que sequer podem ser chamadas de filme; alguns filmes razoáveis, mas que se perdem no meio do caminho; outros que apontam alguma esperança, mas que também sofrem com a irregularidade; e apenas um longa, Francisco Brennand, que é seguro do começo ao fim.

Tenho um temor de que a abertura de uma janela privilegiada a esses filmes trabalhem contra a formação de público, uma das principais funções de um festival de cinema. Quem sair de um A Arte de Interpretar – A Saga da Novela Roque Santeiro pode achar um prato cheio para o discurso simplista de que “cinema brasileiro é tudo uma porcaria” e não dar uma segunda chance a bons filmes como O Som ao Redor, Boa Sorte, Meu Amor e O Que se Move, por exemplo.

 

Aos filmes:

Sobre os interessantes

Num universo de 14 longas, apenas três realmente mostram algum potencial de permanência – mesmo que dois deles também sofram com problemas. Nove Crônicas para Um Coração aos Berros tem um tratamento muito eficaz do humor. Não há piadas, mas situações tragicômicas do cotidiano. A interação entre o pretenso músico, o roqueiro do violão e a junkie bonitinha é de uma precisão rara, assim como as aparições fantasmagóricas e filosóficas de Marat Descartes.

Mas como se trata de um filme que acompanha pequenos trechos da vida de personagens em uma cidade, alguns são mais interessantes que os outros. Simone Spoladore, atriz que aplica com frequência o timbre certo às suas personagens, está afetada como prostituta. Já o enredo com o personagem de Mario Bortolotto não é orgânico ao retante do filme. Em compensação, a paixão entre professora e aluna, o corretor e suas lasanhas, o alemão perdido e o mendigo são bons momentos.

Sinfonia de um Homem Só é mais ousado, exalando uma intenção em fazer planos que justifiquem serem chamados como tal. Em um bom punhado de momentos o filme de fato alcança a pretensão. O pai no chuveiro, o diálogo do sindicalista, a violência da paisagem urbana, a caminhada longa pela estrada são alguns desses momentos. O silêncio como subtexto das relações humanas também.

Mas há os planos que, apesar de bonitos, não trazem força ao conjunto do filme – o tiro na floresta, a caminhada morro abaixo –, enfraquecendo-o. Outro senão: trabalhar com fotografia em preto em branco captada em digital é sempre um complicador a mais. É preciso muita precisão para chegar a um resultado aceitável e em muitos momentos do filme não é.

O mais redondo desses três filmes que vale conversar é Francisco Brennand. Bem verdade que a estrutura de produção, o calibre da equipe e o próprio fato de ser rodado boa parte em película dão uma força a mais ao filme.

Mas havia algumas armadilhas nas quais ele poderia cair, mas não ocorre. Uma delas é o fato da diretora ser sobrinha do personagem, o que não implica transformar seu documentário num consultório sentimental. Percebem-se momentos de bastante precisão cinematográfica e um esforço em não depender apenas do que o personagem traz. Por exemplo, o tratamento fantasmagórico da “cidade” particular de Brennand, um ermitão cercado de peças. Ou a transformação do diário em fruição poética para se aproximar do universo do personagem. Ou a própria astúcia em ter a câmera próxima nos momentos de sinceridade – quando ele, tentando revelar sua face de pintor, mira a bunda de um de seus desenhos e diz “ela era assim mesmo”.

Sobre a pretensão que engole

Há os que tentam saltos mais arriscados, mas lhes falta solidez, o equilíbrio para segurar o filme no nível da pretensão. Na competição Novos Diretores o desequilíbrio mais agudo aparece em Jardim Atlântico. Seus momentos de beleza (os signos, a cena do primeiro tiro e a subsequente cena na floresta) são soterrados pelo clichê (passado de memória afetiva e sexual = carnaval filmado em Super-8), pelo desequilíbrio do elenco (Sylvia Prado está bem, mas é difícil acreditar em Fransérgio Araújo e Mariano Mattos Martins) e por diálogos pomposos em cenas de celebração que remetem ao pior da política do afeto.

O mesmo desequilíbrio ocorre em Lacuna, que estabelece um aparente diálogo de dramaturgia com O Céu Sobre os Ombros, mas não consegue desenvolver os três personagens com o mesmo equilíbrio e interesse. A performer que trabalha como educadora corporal é realmente a única que interessa.

Há também Cores, que estabelece o estranhamento pelo viés mais simplista: título remete a uma profusão cromática, mas a fotografia é em preto e branco. O início embalado pelo rock é bastante ruim. No miolo e na parte final ele melhora, deixando, porém, aquela incômoda sensação de que tudo feito durante o filme é apenas para justificar o plano da chuva. Há outro problema mais grave: ao citar Terra Estrangeira, o filme pretende ser radiografia de um momento. Cenas depois, mostra um discurso de Lula na televisão, operação que justificaria um certo marasmo dos personagens e, em instância maior, da juventude. O filme podia ser menos leviano e en passant em tal colocação.

Sobre os longas que seriam sólidos médias

Houve longas que seriam bons médias-metragens. Caso de Rapsódia Armênia. Mas todos sabemos que até mesmo nos festivais de cinema a janela para o média é minúscula. Só que o próprio ato de esticar o filme para deixá-lo com 63 minutos só o faz enfraquecer. Isso está ilustrado no plano da senhora deitando-se na cama, bem inútil para o conjunto, já bastante carente de foco.

O mesmo acontece com Pra Lá do Mundo, que é melhor filmado, aproveitando-se da paisagem, mas que depois de certo momento corre atrás do próprio rabo, repetindo-se. Já Metrô tem a perspicácia de encontrar personagens fora do óbvio – o mendigo que delira, a menina sem rumo, os coladores de cartazes. Esses, porém, não ocultam os momentos mais fracos (a repetição do túnel como ausência de rumo ou a abertura e o encerramento do documentário).

Sobre a precariedade

Houve produções cuja simples presença num festival de tamanha importância como a Mostra, com um papel histórico e solidificado para a formação de público é questionável. A Arte de Interpretar – A Saga da Novela Roque Santeiro é de uma precariedade vergonhosa. Não falo da financeira, mas da cinematográfica, pois simplesmente não há cinema neste longa, que é senão uma sequência de imagens que formam, no máximo, um material curioso para extra de DVD.

No mesmo grupo entra Embu – Terra das Artes. Não existe um plano neste filme, apenas uma reunião de cabeças falantes em imagens mal captadas intercaladas com tentativas de respiro, inserções de montagem como a da poetisa. Me pergunto se a evidente fraqueza do filme não neutraliza a sua capacidade de mobilização, pois é claramente um instrumento de militância.

É impossível fazer um bom documentário militante? A questão vale tanto para Embu quanto para Muito Além do Peso, um filme que quer alertar contra os perigos do sobrepeso entre as crianças. O maior alvo é a desenfreada propaganda infantil. Outra causa nobre abordada num filme que é um emaranhado de piadinhas de animação, momentos à Michael Moore, sequências em que se parece com programa educativo quando revela a verdade a um personagem. Aqui o cinema também passou longe.

Dentro desse escopo de precariedade há os que apresentam raríssimos momentos de dignidade, mas que caem numa tendência forte do documentário: sugar os personagens. A Porta Larga tenta ser o que Leite e Ferro é, mas não consegue, pois depende inteiramente do que suas entrevistadas dizem. Apenas as cabeças falantes nos revelam algo, energia que o filme subaproveita ao repetir exaustivamente os tópicos ou ao inexplicavelmente estender cenas ocas – a da visita do humorista ao cárcere, por exemplo.

Antes do Fim do Mundo é outro que suga à exaustão seus personagens, mas com um agravante: ao sobrevoar pelas opiniões que diferentes religiões têm sobre 2012 como o fim do mundo, não se atém nem se aprofunda em nenhuma delas. Torna-se um show room cine-litúrgico.

Heitor Augusto

 

*Este texto se detém aos 14 longas que foram avaliados pelo Júri da Crítica para o Prêmio Abraccine, entregue ao documentário Francisco Brennand.

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