A Bela Que Dorme
A Bela que dorme (Bella Addormentata, 2012), de Marco Bellocchio
A noite que toma conta dos personagens sem que eles possam voltar à luz é um dos temas predominantes da fase mais contemporânea da obra de Marco Bellocchio. A este conjunto de filme, o verso de Emily Dickinson “Bom dia noite”, que é título do filme de Bellocchio sobre o sequestro de Aldo Moro em 2003, cai com uma forte metáfora.
Em A Bela que Dorme tal ideia estende seus domínios para além da personagem principal e abre-se como uma grande sombra abarcando todos que estão à sua volta, praticamente um país inteiro, comovido com o drama da bela que, em coma, repousa indiferente entre a vida e a morte. A partir deste trauma verídico, o caso de Eluana Englaro, Bellocchio não discute apenas a eutanásia, mas a forma como os italianos lidam com a questão da morte e da religiosidade no país berço do catolicismo e tendo o vaticano como um centro de poder tão influente quanto o próprio parlamento.
Mais do que isso, consegue habilmente tratar da questão de maneira macro, a comoção do país dado o alarde que a mídia faz do caso e a forma como os políticos reagem à questão diante da iminência de mudar uma lei que autoriza a eutanásia, além de criar pequenas tramas paralelas nas quais as relações familiares e de proteção são fundamentais. E, nesta estrutura coral, tal coro de vozes e dores forma um retrato bastante humano, e para lá de metafísico, no qual os verdadeiros protagonistas, os senhores da questão, jazem silenciosos, bem como o senhor de qualquer possível resposta para o insondável dilema.
E esta relação com o outro – esteja este outro em coma, como duas das personagens do filme, ou à beira da morte como a mulher do senador que agora precisa se acertar com a filha do casal, ou bem vivo e agitado como o irmão que pede ao mais velho que o proteja – está no filme de Bellocchio sempre em primeiríssimo plano, com os rostos muito próximos da lente, quase invadindo a tela, tudo à flor da pele, de maneira histérica.
Bellocchio usa esse fanatismo ruidoso, essa paixão histérica como forma. O filme é barulhento, está mergulhado na comoção coletiva que o caso gera e nas obsessões particulares dos personagens com a sua verdade e a sua forma de ver o mundo. E se não bastassem todas estas questões, e toda a genialidade do cineasta ao compô-las, não há como perder de vista que A Bela que dorme é também uma metáfora da Europa e da Itália em crise, de valores inclusive.
Os que acham que o cinema italiano morreu, precisam ver os filmes recentes de Bellocchio e também Moretti. Poucas vezes, a desesperança foi tão belamente filmada.
Cesar Zamberlan
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