Raros Sonhos Flutuantes e o fim da carreira de Sugawa
Raros Sonhos Flutuantes e o fim da carreira de Eizo Sugawa
Anos 80 e começo dos anos 90. Hoje parecem ridículos aqueles figurinos e penteados, mais ainda a música brega à base de saxofone e batida levemente dançante que reinava nas noites pré-internet. É a época do domínio yuppie, domínio que está presente em diversos grandes filmes do período, desde Rohmer e Chabrol até Friedkin e Ferrara. É preciso passar por cima desse domínio, ou entender que se alimentar das características dele não é necessariamente ruim, para aproveitar o que esses filmes têm de excelência.
Raros Sonhos Flutuantes, último filme do maldito Eizo Sugawa, é um desses casos. Quando o vi pela primeira vez, na 20ª Mostra SP, em 1996, a moda da época em que foi rodado (1989/1990) ainda não chamava a atenção para seu lado patético (se é que existe outro lado). O filme na ocasião me pareceu uma obra de poesia arriscada, mas muito bem burilada, um típico filme de arte, mas sem os cacoetes que colocam tal expressão num nível pejorativo. A memória nos prega peças, é sabido, mas o final que a minha memória inventou (homem e menina de mãos dadas se afastando da câmera) era tão bom que demorei alguns minutos para apreciar o belo final que o filme realmente apresenta: a menina se afastando da câmera, sozinha e decidida na multidão de ternos e demais roupas de trabalho.
Revendo hoje, como parte da homenagem a Carlos Reichenbach que a Mostra faz neste ano, o filme me encantou também por outros aspectos. Em primeiro lugar, impressiona a coragem que Sugawa teve de se aproximar de um registro contornado pela vagabundagem. Em alguns momentos, o filme lembra Showgirls, pelo modo de encarar as cenas de sexo, ou mesmo alguns filmes de Jean Garrett, sobretudo no tom "sem medo de ser descaradamente brega": uso da câmera lenta com sax ao fundo, imagens refletidas, desfocadas estratégicas. Se um filme feito hoje, dessa maneira, for apresentado a algum desses festivais badalados, com curadores politicamente justos e de hábitos descolados, corre o risco de ser alvo de risadas jocosas, mesmo sendo muito acima da média programada por esses mesmos festivais.
Porque Raros Sonhos Flutuantes é pulsante, ironicamente despudorado, safado e arriscado, nada a ver com o cinema certinho, ou calculadamente torto que se faz hoje, majoritariamente. Está repleto de cenas antológicas e inusitadas, filmadas de um jeito que parece ter entrado em algum buraco negro das escolas de cinema. Ninguém mais filma assim, infelizmente.
Aliás, são vários os momentos que têm paralelos com o cinema de Reichenbach. Logo, é perfeitamente compreensível que ele tenha sido um dos maiores defensores de Eizo Sugawa, responsável, até onde sei, pela vinda dele ao Brasil em 1996. Em texto publicado no catálogo da 20ª Mostra, Carlão escreve:
"Dos cineastas japoneses da safra contestatória que marcaram a minha geração, Eizo Sugawa foi indiscutivelmente o mais deflagrador. (…) O que mais impressionava nos filmes de Sugawa era um desesperado elogio do individualismo libertário e da desobediência civil sem nenhum esquerdismo óbvio. Por isso Sugawa chegou a ser acusado de nazismo pela esquerda mais xiita. Misógino sim, mas jamais reacionário, o cinema de Sugawa apontava para um existencialismo desenfreado. Seus heróis, ao invés de racionalizar seu inconformismo, submetiam-se aos apelos do instinto."
Muito provavelmente estejam nessas palavras de Carlão as razões do sumiço de Sugawa. Seus filmes não estão disponíveis em DVD em lugar algum do mundo, o que é no mínimo aviltante. Entende-se que Raros Sonhos Flutuantes mexa em tema tabu (pedofilia) com uma ousadia rara dentro de um esquema comercial, e que no Japão se pague algum preço por tamanha ousadia. Mas ausente no mundo todo? Nem seus filmes clássicos dos anos 60 e 70 existem no mercado.
Foi uma bola dentro da Mostra resgatá-lo, e uma pena que não tenham conseguido (ou tido a ideia) de trazer também seu penúltimo filme, O Rio dos Vagalumes. Nessa obra-prima de 1987, Reichenbach identificou muito bem a influência de Mikio Naruse que Sugawa tanto clamava em seus últimos anos de vida.
O diretor, que nos anos 60 e 70 fez filmes politizados, neste filme sobre amor juvenil, cria, até onde minha memória pode ser confiável, uma das cenas mais emocionantes que vi em cinema. O menino vai com a professora ver o trecho do rio em que os vagalumes se encontram, esperando que sua pequena amada apareça. Nada da presença da menina. Eles resolvem partir sem ela. Mas ela aparece de última hora, esbaforida no meio das árvores, aparição acompanhada de um emocionante (e desbragado) crescendo musical. Corta então para o rosto do menino, que contém toda a alegria do mundo. É o tipo de junção harmoniosa entre um plano e um contraplano, auxiliada por uma pontuação precisa. É uma daquelas cenas que deveriam ser bem estudadas, e até copiadas.
Em comum com Raros Sonhos Flutuantes, O Rio dos Vagalumes tem uma plasticidade irrepreensível. Mas enquanto o primeiro privilegia ambientes fechados e noturnos, o que condiz perfeitamente com seu clima fantástico e com a atração sexual do protagonista yuppie, O Rio dos Vagalumes capta a força e a beleza da natureza que circunda os apaixonados juvenis com habilidade digna de Mizoguchi.
Ou seja, no meio da decadência total do cinema japonês (quando ainda restavam alguns veteranos de sua geração, como Suzuki ou Imamura, e poucos novos diretores despertavam interesse), Sugawa apresentava dois dos filmes mais originais e belos dos últimos trinta anos. O que precisa ser feito para que eles estejam nas estantes dos amantes do bom cinema?
Sérgio Alpendre
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