Ano VII

Parte 7: Além das Montanhas no meio dos clássicos

sábado out 27, 2012

Parte 7: Além das Montanhas no meio dos clássicos

Em mostras com grande oferta de filmes clássicos, como está sendo esta última, o diário fica mais sujeito a acompanhamento de revisões do que a descobertas e primeiras impressões. Nestes dois últimos dias, por exemplo, revi, em cópias excelentes, três obras-primas.

Uma é inglesa, de 1943, assinada por Michael Powell e Emeric Pressburger. Coronel Blimp – Vida e Morte já havia me cativado quando o descobri, em meados dos anos 1990, numa exibição no canal Bravo Brasil. De lá para cá, as duas revisões, uma em DVD, outra agora na Mostra, só confirmaram a estrutura perfeita que se desenrola num espaço compreendido entre o início do século 20 e o miolo da Segunda Guerra Mundial. Powell e Pressburger captam muito bem a mudança de mentalidade que ocorreu entre uma guerra e outra, num caminho semelhante ao que Renoir havia percorrido no igualmente genial A Grande Ilusão. Foi-se o cavalheirismo, sobra o jogo sujo. Coronel Blimp inicia uma sequência de seis obras absolutas que eles realizariam até 1948, contendo Contos de Canterbury, Eu Sei Onde Fica o Paraíso, Neste Mundo e no Outro, Narciso Negro e Sapatinhos Vermelhos. É uma sequência invejável, em qualquer lugar e qualquer tempo.

A belíssima cópia em DCP faz jus ao colorido revolucionário para a época. O diretor de fotografia é Georges Perinal, mas Jack Cardiff filmou a sequência dos troféus de caça na parede, e com isso ganhou o direito de ser o fotógrafo dos filmes da dupla entre 1946 e 1948.

Fechando a quinta-feira, outra obra-prima: Raros Sonhos Flutuantes, o filme derradeiro de Eizo Sugawa. Tão maldito quanto Shibuya, mas de maior apelo junto ao público atual da Mostra, Sugawa impressionou a plateia jovem da Cinemateca, e provocou muitos risos fora de hora com sua abertura corajosa ao vagabundo. O filme pode ser comparado a Showgirls, outro longa que flerta com imagens bregas de cenas de sexo simulado. A música yuppie que entra nos momentos quentes combina perfeitamente com o clima que Sugawa impõe, entre a fantasia e a decadência capitalista. Mais sobre esse e outro filme esquecido de Sugawa logo mais na Interlúdio.

O importante aqui é ressaltar que diante de obras desse quilate, os pobres filmes recentes ficam meio perdidos, quase sempre ensanduichados por filmes muito melhores que eles (se não é Powell e Sugawa, é Tarkovski e Shibuya – que é um diretor muito bom, sim senhor).

Dentro dessa peleja injusta, Além das Montanhas, primeiro filme visto na segunda metade da 36ª Mostra, até que se sai bem. É o primeiro filme de Cristian Mungiu depois do premiado 4 Meses, 3 Semanas, 2 Dias  (e depois do episódio de Contos da Era Dourada), e por mais que se defenda 3 Meses (eu, por exemplo, acho que tem seu valor), é sensível a evolução do diretor no tratamento do espaço e na construção que privilegia o desequilíbrio gradual, dentro e fora do enredo. O scope é trabalhado de forma a acentuar a frieza que aprisiona a protagonista, com pequenas correções feitas para acompanhar a movimentação das atrizes (as duas principais, por sinal, foram premiadas em Cannes). Resta saber como um filme tão grande (mais de duas horas e meia) se sairá no circuito comercial. Será que o público de arte estará preparado para ele, ou irá conferir o hype e se decepcionar?

No mesmo dia foi exibido O Espelho para um Cinesesc lotado, exibição que eclipsou o longa de Mungiu. O Espelho é o filme paradigmático de Tarkovski. Aquele que os detratores do diretor preferem lembrar na hora de elencar o que consideram defeitos, e aquele que os amantes de sua obra defendem com unhas e dentes contra tudo e todos. Pessoal, incompreendido em sua terra, o filme causou até uma briga séria com o antigo diretor de fotografia de seus filmes, Vadim Yusov. Depois de O Espelho, o melhor é não ver mais nada, não poluir novamente o olhar com a imperfeição contemporânea.

Como registro, vale avisar que os que se aventuraram a ver o Autoreiji 2 de Takeshi Kitano na sessão da meia noite se debateram com uma projeção maltratada pelo zoom irresponsável. Esses projecionistas precisam se alfabetizar visualmente nesta era do DCP, e com urgência.

Sérgio Alpendre

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