Ano VII

O cinema de Miguel Gomes

quarta-feira out 24, 2012

 

O Cinema de Miguel Gomes: cada filme é um filme, ó pá

Por Heitor Augusto

Originalidade, esta palavra tão equivocadamente usada para definir cinemas que não passam de criativos, cai como uma luva para a obra do português Miguel Gomes. Seus filmes derrubam um mundaréu de expectativas do espectador para acionar e abrir o leque para outras. Não só no comparativo do conjunto de seus filmes, mas dos rumos tomados dentro de cada um. É praticamente impossível classificar como Kalkitos ou Aquele Querido Mês de Agosto. Resta, primeiramente, vivê-los e depois procurar caminhos próprios para se relacionar com eles.

Gana e liberdade são sentimentos que guiam a feitura dos filmes, mas também a experiência como espectador, que pode se apropriar disso ou daquilo nas produções.

Em Aquele Querido Mês de Agosto, pode-se ficar atento à narrativa musical, às nuances das canções à medida que o filme viaja por dentro de Portugal. Ou pode-se priorizar o que há de processo nesse falso documentário. Ou melhor: coordenar ambas as leituras.

Mas que não se entenda essa falta de previsibilidade dos enredos, a ousadia dramatúrgica ou o trânsito e subversão de gêneros dentro de cada um filme como um festival de vale tudo, uma feira de aberrações. Gomes não como escudo ou sombreiro que oculta fraquezas.

Para o amadurecimento do discurso por trás dessa ideia de liberdade foi fundamental arriscar-se nos curtas-metragens. Aí percebemos que o conjunto da obra de Miguel Gomes pregressa ao seu primeiro longa é nada menos que caótico.

O mesmo cara que fez esse poço de seriedade que é Tabu dirigiu uma piada de um minuto chamada Pre evolution soccer's one-minute dance after a golden goal in the master league. Nada mais do que uma edição faceira de um gol marcado no Pro Evolution Soccer, o PES, melhor franquia de futebol dos games. Um vídeo vagabundo, uma piada interna que só vai dar risada quem já jogou – eu tive acesso de risos.

A mesma cabeça que pensou nesse vídeo escreveu 31, seu melhor curta, em que o cinema entra na textura do filme, compondo seu discurso político. Faz-se um paralelo entre O Mágico de Oz, a Revolução dos Cravos e Portugal contemporâneo. Fala-se de uma certa bolha, de um hiato do mundo real que provoca cegueira, no isolamento dos que tem com os que não tem.

A falta de vergonha e o apego à liberdade liberou Gomes a realizar um filme que lhe deu a pecha de retardado mental, Kalkitos. Cegueira do acusador. Por tás da linguagem bizarra que falam os homens que se comportam como crianças está um comentário sobre quem é diferente, quem está de fora e encontra seus iguais. Só que o registro não é o sensível como L, de Thaís Fujinaga, mas o cômico-ridículo.

Mas Gomes também fez curtas mais palatáveis. Curiosamente, são os seus menos interessantes. Definitivamente o português deve deixar a tarefa de fazer esse tipo de cinema nas mãos de outros, emocional e intelectualmente comprometidos com isso. O que Gomes acrescenta para o cinema vem com outras posturas, mais agressivas.

Ambos são seus dois primeiros filmes: Entretanto (1999) e Inventário de Natal (2000). Os dois têm esboços do nonsense que banharia o restante de sua carreira, sejam os beijos múltiplos da menina nos dois garotos ou o boneco do Homem-Aranha brigando com um presépio (!).

Em 2004, Gomes estreia no longa-metragem. A Cara que Mereces chuta a porta, mas não consegue manter o equilíbrio, o alto nível em todos os momentos. Problema comum tanto neste como n'Aquele Querido Mês de Agosto. Só com Tabu é que Gomes conseguiria atravessar todo o filme com o mesmo vigor.

No primeiro longa, dialoga-se com o musical e Gomes apresenta um talento raro para o humor – lembre-se, o humor português, que por vezes se parece muito com o espírito do Monty Python. Na primeira parte, muito bom comentário sobre um trintão que se recusa em crescer; na segunda, quando Gomes leva o filme para o registro da fábula, nem tanto. Ainda assim, um filme atípico no cenário atual.

Com Aquele Querido Mês de Agosto o diretor equilibra o filme por mais tempo. Ele cai, porém, quando opta por se tornar abertamente uma ficção e deixa de “caçar” seus atores. Felizmente, recupera-se no finalzinho com o antológico diálogo com o editor de som. Em Tabu, alcança o equilíbrio, tanto que é o único de seus filmes que me sinto confortável com uma cotação acima das quatro estrelas.

Isso porque o cinema, que já havia aparecido em obras anteriores de Gomes, entra na textura de Tabu com muito mais força. Tanto pelo que é mais perceptível – a apropriação do título do clássico de Murnau, a fotografia em preto e branco, a janela em desuso 1.37:1 – ou no que é mais sutil, especialmente a tentativa de recuperar no espectador a crença inocente da imagem cinematográfica. Trata-se de uma produção cujas imagens tentam despertar o olhar de um espectador que já nasce assolado por imagens.

Como acontece em outros filmes de Gomes, esta é apenas uma das leituras possíveis. Tabu pode ser visto como um filme que se insere no presente cinematográfico ao comentar o seu passado – com modernidade, não com o saudosismo agridoce de O Artista. Mas é também um filme sobre a perda, seja do amor, da juventude ou do protagonismo colonial – fantasma que ronda a geração de Gomes, vide O Último Dia que Vi Macau, de João Pedro Rodrigues.

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