Abendland
Abendland (2011), Nikolaus Geyrhalter
Quem já viu Our Daily Bread, o mais famoso trabalho de Nikolaus Geyrhalter, sabe que seus chamados documentários causam constantemente mais fascínio e impacto do que a totalidade das filmografias em ficção de seus conterrâneos mais celebrados, caso de Michael Haneke (nascido na Alemanha mas radicado na Áustria) e Ulrich Seidl.
Como naquela produção (cujo centro gravitacional era a indústria alimentícia), nota-se aqui uma visão angustiante de mundo, visão na qual a frieza da câmera nunca será suficiente para tornar abominoso e gratuito aquilo que ela registra (como ocorre com freqüência nos cineastas supracitados).
Produzido durante 2008 e 2010, abrangendo uma parcela considerável do território europeu, Abendland pretende captar aquilo que, por melhor definição, poderíamos definir como o estado das coisas de seu continente, com a ênfase recaindo justamente sobre as coisas: aqui a reificação é generalizada, e a contundente atenção aos objetos insere o espectador em um mundo amplamente físico e aterrorizador, pois construído aos moldes das distopias mais aflitivas.
Se a evolução do ser humano deu-se muito em decorrência de sua inigualável capacidade de produzir instrumentos, são eles agora que simbolizam nossa falência nas relações intersubjetivas, e isso Gerhalter irá explorar de todas as maneiras, mas sobretudo em nossa crescente preocupação com a segurança e com a saúde. E para isso ele levará sua câmera do congresso europeu aos banheiros públicos, evidenciando o condicionamento mecânico da sociedade e a equiparação de tudo e todos nela inserida: a eficiência do tirador de chope da Oktoberfest é a mesma do enfermeiro diante de seu paciente, e a motivação para o seu ofício, também.
O incômodo no espectador parte de ver ampliado na tela do cinema a naturalidade algo anestesiada de sua relação com fatos deste tipo. Em uma sequência bastante representativa, acompanhamos os bastidores de um telejornal no qual a apresentadora, após relatar as mortes na guerra do Afeganistão (se não me falha a memória), passa, com um despojamento perturbador, disso aos dilemas da grife Burberry e seu xadrez clássico.
A franqueza desconcertante de tais imagens nos fazem constantemente indagar a dificuldade do cineasta em conseguir as autorizações suficientes para suas captações, e nisso também está uma pergunta que, como tantas outras, Geyrhalter jamais nos fará diretamente: o quão distante estamos de tudo aquilo que nos cerca? Qual é a exata noção que temos das coisas? De sua produção, de sua natureza?
Tal afastamento resulta na sensação coletiva de não-pertencimento das pessoas que aqui aparecem e, ainda, na crescente terceirização de toda sorte de serviços – realidade tão sintomática de nosso tempo, de nossa globalização. Daí o disque-sexo (com a moça segurando entre as coxas um cartaz que acentua seu domínio do inglês) e o disque-ansiedade, em outros dois momentos memoráveis do filme.
E essa estranheza também o tornará constantemente tenso, e provavelmente não serei o primeiro a aproximar esse documentário de qualquer ficção-científica pré-apocalíptica, tornando incertos até mesmo os momentos de mais aparente tranquilidade.
Peguemos, por exemplo, o discurso do Papa Bento XVI, em frente ao Vaticano. Após sucessivas lembranças de nosso encantamento com a tecnologia e com a imagem, vermos a anacrônica figura do sumo pontífice da Igreja Católica sentado em seu trono só irá fazer algum sentido momentos seguintes, quando seu rosto é agigantado pelo telão na Praça de São Pedro. A seguir, surge na tela seguranças que parecem saídos de Cosmópolis - ainda mais pelo branco impecável do Papamóvel.
Impossível não vermos o ridículo de nossa situação e, sobretudo, a contundência insolente mas necessária deste filme.
Bruno Cursini
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